Continuação do artigo de Vasco Rato, no "Independente"
"Depois de ter resistido aos projectos totalitários do século XX, a direita deve manter-se fiel a esta tradição libertária. Não se pode pedir que o Estado seja afastado da 'economia' e, depois, exigir que esse mesmo Estado se transforme num guardião de valores e princípios morais que, mesmo se maioritários, nunca poderão ser consensuais numa sociedade pluralista. A direita deve assumir uma postura intransigente em defesa do pluralismo e não da 'maioria moral'.
A segunda questão que se apresenta prende-se com a moralidade do aborto. Para a direita tradicionalista, a interrogação nem sequer se põe: o aborto é sempre 'imoral'. Tal absolutismo e intolerância ignoram as 'realidades' que levaram uma mulher a interromper uma gravidez. Se recusarmos a ideia de que os 'juízos' devem ser feitos no abstracto - sem medir as consequências de tais juízos para as pessoas - as realidades subjacentes à decisão de abortar assumem uma relevância gigantesca. Algumas mulheres, por razões de natureza profissional, engravidam sem estarem preparadas para a maternidade. Outras não terão condições materiais para garantir uma vida digna à criança. A gravidez também pode resultar de casos extra-conjugais ou da irresponsabilidade adolescente.
Pode dizer-se que nenhuma destas razões justifica o aborto. Talvez. Mas tal juízo ignora o contexto da decisão e as consequências que uma gravidez indesejável poderão ter na vida das pessoas, inclusivé da dos recém-nascidos. Nenhuma mulher opta por interromper a gravidez de maneira leviana. São decisões dolorosas que deixam marcas psicológicas e emocionais duradouras e, por vezes, levam ao colapso dos relacionamentos. E se o aborto é uma opção traumática, porquê transformar a mulher numa criminosa? Salvaguardando as três excepções previstas na lei, qualquer mulher que opte por fazer um aborto é uma criminosa. E é aqui que reside o problema essencial: o Estado criminaliza escolhas que deveriam ser do foro privado.
Nenhuma reflexão sobre o aborto pode escamotear o essencial: quando começa a vida? A resposta que se dá a esta interrogação é decisiva, porque determina a resposta que se dá às duas anteriores. Definir o começo da vida pressupõe definir o fim da vida. Hoje, a morte clínica ocorre no momento de cessação da actividade cerebral. Se assim é, faz sentido adoptar a definição de 'vida' aceite pela esmagadora maioria da comunidade científica: a vida começa quando se verifica actividade cerebral. Eis uma definição inequívoca e universalmente aplicável. Significa isto que um feto - até ao início da actividade cerebral - não é uma vida humana. Concordo que o 'direito à vida' é sagrado, apenas discordo de definições ético-religiosas quanto ao início da vida. Pode, é certo, adoptar-se a posição de que a vida começa na concepção e que os fetos são 'vidas potenciais'. Porém, se assim é, as excepções hoje concedidas pela lei - aborto em caso de violação, grave deformação do feto ou grave perigo para a vida da mãe - logicamente deixariam de ser permitidas.
Em Portugal, devemos descriminalizar o aborto, mas não devemos ignorar que muitos portugueses se opõem a essa medida. De facto, julgo que seria uma afronta a estes cidadãos se o aborto fosse pago pelos seus impostos. A solução política é, portanto, permitir o funcionamento de clínicas privadas, mas o custo do aborto seria sempre suportado por quem opta por esse caminho. Tal como o Estado não deve criminalizar uma decisão individual, não há razão para que o Estado pague as despesas dessa decisão através do Serviço Nacional de Saúde. Numa sociedade pluralista, julgo que esta solução é a única que poderá respeitar as sensibilidades de todos os cidadãos. Não terá a "coerência" dos absolutistas, mas poderá humanizar uma lei hipócrita que é sistematicamente violada com toda a impunidade".