O médico hipocondríaco existe. Chama-se Luís Moreira, ou Morel, se preferirem, por causa do R. Fonseca. Embora sem a violência alcoólica com que Luís Gouveia Monteiro arrancou a palavra eternuridade ao velho baleeiro do Pico, também eu extorqui a identidade a Luís Moreira, para este jogo onde se confunde a glória, o
mal e a
eternuridade.
Luís não lê blogues, não sabe usar o “mail”, mas por um mecanismo de compensação tecnológica domina na perfeição as SMS. Envia-me, com alguma regularidade, mensagens com sublinhados, pontuações exdrúxulas, acentuações comoventes e outras delicadezas de que, pelo menos via SMS, seria eu incapaz.
Ontem, depois de uma SMS delicada, tive um assomo de sentimento de culpa por usar a sua existência para fins que lhe são alheios. Devo-lhe tanto e agora ainda mais uma explicação, em SMS: “Fiz de ti uma personagem de uma historia”.
- O quê, UMA HISTÓRIA, QUE HISTÓRIA? (O espanto vem em maiúsculas).
- Não te preocupes. Baralhei os teus dados, os factos, não te arranjarei maçadas.
Telefonou-me.
- Que brincadeira é essa? Quem é que eu sou?
- És um médico chamado Luís.
- Não quero ser Luís, preferia não ser médico.
- Já está. Agora já não vou mudar o nome. O ser médico dá jeito para umas metáforas. És um médico hipocondríaco.
- Hipocondríaco não sou.
(Nunca ninguém assume)
- Gostava que tivesses olhos azuis.
- Olhos azuis?
- Sim, como Jácome de Bruges.
- E sabes lá tu se o Jácome de Bruges tinha olhos azuis?
- Era flamengo, e além disso a Agustina já escreveu isso no “Concerto dos Flamengos”. Passou à história pátria. Por mim, tinhas barriga.
- Eu não quero ser reconhecido, mas não quero ficar irreconhecível. Eu não tenho barriga. Cortei no álcool, vou ao ginásio, ando a pé, e agora pões-me com barriga!
- Um nadinha de barriga. Qual é o mal? O Morávia gostava de mulheres com barriga.
- O que é que já escreveste sobre mim?
- Nada de muito especial. Dei uma carga emocional àquela vez em que me receitaste Dexamytrex, lembras-te, quando eu me vim embora, no porto? Eu estava com conjuntivite.
- Aquilo não me pareceu nada conjuntivite, julguei até que estivesses comovida por nos separarmos. Só falei no Dexamytrex porque tu querias à viva força um medicamento.
- Era mesmo conjuntivite. Mas, na história, dou a entender que choro mesmo e tu não o percebes e limitas-te a passar a receita, o Dexamytrex.
- Não quero que faças de mim um brutamontes.
- Há um brutamontes, mas não és tu. A propósito, sabes andar de mota? Como é que se mexe naquilo? Ah, já me esquecia. És de Santa Maria.