Aqui há uns tempos, o Ivan Nunes fez uma óptima análise ao filme do Woody Allen, que repesco agora, onde se analisa o filme melhor que nos textos abaixos, que reproduzem apenas "achismos".
Woody Allen em AntZ
De cada vez que Woody Allen fizer um filme novo, haverá sempre um idiota para proclamar que se trata do «regresso» do realizador às suas comédias dos «bons velhos tempos». Haverá também outros, suficientemente sensatos para não fazerem semelhantes descobertas, que se limitarão a manifestar o seu enfado pelo carácter repetitivo da obra do realizador. Mas parece-me que faz mais sentido comparar a obra de Woody Allen ao discurso de um paciente ao longo da psicanálise: de tempos a tempos, os mesmos temas, os mesmos problemas e as mesmas obsessões reaparecem; no entanto, nunca são formulados da mesma maneira, nem no mesmo contexto, nem dizem nem querem dizer precisamente a mesma coisa. Um filme de Woody Allen de 2003 está trinta anos distante de um filme de Woody Allen de 1973, não só no plano do facto mas porque ele passou trinta anos a mastigar os mesmos temas, as mesmas obsessões.
Esta imagem da análise parece-me que faz especial sentido em relação a Anything Else. O filme introduz uma novidade muito significativa no universo de Woody Allen. Não é a primeira vez que o actor que encarna «a personagem de Woody Allen» é outro que não o próprio Allen: já aconteceu com Kenneth Branagh em Celebrity (1998) e até com o boneco animado de AntZ (1998), um dos meus filmes preferidos «de» Woody Allen dos últimos anos, em que a formiga Z era o próprio Allen. Mas é a primeira vez em que «a personagem de Woody Allen» entra pela mão de dois actores diferentes, com dois papéis diferentes, no mesmo filme. Jason Biggs é «Woody Allen», o «Woody Allen clássico», que vai ao psicanalista, passa a vida desorientado pelas mulheres e vive obcecado com a morte; mas Woody Allen também é «Woody Allen», um personagem mais velho, uma outra faceta de Allen, que no filme só existe enquanto amigo e confidente do primeiro.
E o que diz, basicamente, o Allen-velho ao Allen-Biggs? Diz-lhe, a todo o momento, que ele tem que largar o lastro, tem que deixar o seu agente profissional inútil, a rapariga por quem vive obcecado e que faz dele gato-sapato, o psicanalista de quem está dependente, deixar tudo e até Nova Iorque e partir para a Califórnia. Numa frase só, Allen-velho diz a Allen-Biggs para escolher a vida em detrimento da análise; para viver, e não obcecar permanentemente a pensar nisso. Esta ideia é sublinhada em várias passagens do filme, mas sobretudo pelo contraste entre as conversas de Allen-Biggs com o seu psicanalista – um psicanalista que nunca tem opinião sobre nada e que só abre a boca para decretar o fim da sessão ou para devolver as perguntas do seu analisado – e as conversas, que por vezes aparecem imediatamente a seguir, em que Allen-Biggs põe as mesmas questões ao Allen-velho e este, pelo contrário, não dá senão conselhos e até ordens sobre tudo o que o mais novo deve fazer na vida para se libertar, ser ele próprio e, em última instância, ser feliz. O Woody Allen mais velho também já esteve na psicanálise, até ao dia em que, perante o cretinismo do psicanalista, lhe enfiou com um extintor na cabeça.
Temos portanto dois Allens, pela primeira vez, no mesmo filme. O Allen-velho diz ao Allen-Biggs, ao Allen «clássico», que se liberte das suas obsessões, que perca o medo, que viva a vida. Será que temos, então, Woody Allen contra Woody Allen, contra aquilo que Woody Allen sempre foi? Creio que não. Allen-velho e Allen-Biggs são a mesma pessoa: trata-se de um diálogo interior de uma mesma pessoa em pontos distintos do caminho. E quando, no final, Allen-Biggs se liberta simultaneamente do lastro (da namorada, do psicanalista, etc.) e do Allen-velho, o filme acaba, porque o Allen que começa aí é outro Allen, um Allen-síntese. Dá vontade de dizer que à medida que a vida de Woody Allen caminha para o fim, o seu trabalho de análise também caminha para o fim, e o que começa a ser-nos proposto é a porta de saída.
Este filme não é um dos meus favoritos de Woody Allen: o mecanismo de pôr Biggs a falar para a câmara parece-me cansativo, a personagem de Christina Ricci é muito menos interessante que mulheres anteriores em filmes seus e pareceu-me haver, em alguns momentos, um excesso de «piadas». No entanto, o filme coloca, como quase sempre, questões muito interessantes - e novas. O ponto-chave, a meu ver, é que a obra de Allen nunca será compreendida filme-a-filme: nenhum filme dele é, estritamente falando, uma obra-prima, porque nenhum é obra de síntese. O que Allen vai fazendo, ano-a-ano, filme-a-filme, é o seu trabalhinho de análise, o amadurecimento da sua reflexão interior que ao mesmo tempo só existe enquanto prática, isto é, enquanto coisa real, trabalho realizado, filme. As obsessões são recorrentes, mas o ponto em que estamos na reflexão sobre elas nunca é o mesmo.