Não gostei de Angra, às primeiras. Quase nunca gostei de nada às primeiras, os meus amores são os meus hábitos. A Praça Velha, à primeira, foi uma provinciana banalidade no seu desconsolo nocturno. Achei-me muito insensível a Angra toda, muito arrumadinha, tudo no sítio mas de costas para o mar.
A indiferença dos dias parou naquele em que a luz irrompeu com uma violência encantatória e percebi enfim qual era a luz da Terceira. Há uma luz na Terceira que não existe em mais nenhuma ilha dos Açores, em nenhum outro lugar a vi, e essa luz, mesmo na Terceira, é muito rara: apanhei-a no Outono de 1992, no Outono de 1995 e, no ano passado, em Junho. Em Julho voltei e em nenhum desses dias a luz apareceu.
Num desses dias de luz, subia e descia a rua do Galo em passo sempre muito rápido um homem muito belo. Nos seus olhos, azuis como o porto de São Mateus, a luz fazia um reflexo fantasmagórico: segui o homem de olhos azuis pela rua do Galo acima, e junto à igreja da Conceição parou, e revelou-se Jácome de Bruges, o povoador da Terceira, ou o seu fantasma. Jácome de Bruges, como se sabe, nunca morreu: os livros antigos falam do seu desaparecimento, mas o corpo nunca foi encontrado.
Só quando me habituei à luz da Terceira, e ao irromper, nos dias que amanhecem naquela luz encantatória, do fantasma de Jácome de Bruges, é que aprendi a amá-la, a Angra. Os meus amores são sempre hábitos.
Quando Margarida Dutra, convidada para um lançamento do Mau Tempo do Canal em Angra, me desafiou a ir com ela – Margarida não gosta de viajar sozinha e inventou um séquito para a escoltar até à livraria – disse que sim, na esperança de que, no dia marcado, aparecesse a luz. Nessa manhã, muito cedo, Angra ainda estava só meia acordada e, numa volta entre a rua da Palha e o Pátio da Alfândega, ela apareceu, brutal e atordoadora como sempre. Mais tarde, há tantos anos que eu já o sei, o fantasma de Jácome de Bruges assombrar-me-à como é hábito.