Chico Buarque consegue escrever como se fosse uma mulher, coisas maravilhosas mas sempre sofridas, torturadas (à excepção, talvez, de "O meu amor"). Mas o Chico também é muito bom a falar como homem, nas rupturas amorosas, como "A Rita" ou "Trocando em miúdos" (quando Chico fala como homem, as rupturas amorosas são dilaceradas mas nunca tanto como quando fala como mulher, há sempre uma fresta de humor, vá lá saber-se porquê...).
Este "Moto-contínuo", de 1981, é Chico-homem.
(Leiam o que o Ivan escreve na
Praia. Eu, se tiver que me situar de um lado, e felizmente ninguém me obriga, mas se tivesse que me "situar", escolhia o Vinicius/Chico. O Pedro Adão e Silva também tem um texto muito bom no
País Relativo: ele percebe o que o Chico Buarque provoca nas mulheres).
Moto-contínuo
Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você
Basta sonhar com você
Juntar o suco dos sonhos e encher um açude se for por você
A fonte da juventude correndo nas bicas se for por você
Bocas passando saúde com beijos nas bocas se for por você
Homem também pode amar e abraçar e afagar seu ofício porque
Vai habitar o edifício que faz pra você
E no aconchego da pele na pele, da carne na carne, entender
Que homem foi feito direito, do jeito que é feito o prazer
Homem constrói sete usinas usando a energia que vem de você
Homem conduz a alegria que sai das turbinas de volta a você
E cria o moto-contínuo da noite pro dia se for por você
E quando um homem já está de partida, da curva da vida ele vê
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque
Sabe que um homem vai fundo e vai fundo e vai fundo se for por você