Os meus amigos perdem comboios. Adiam viagens, mudam de rota à última hora, apanham boleias inesperadas. Os meus amigos às vezes perdem aviões. Pagam taxas suplementares e multas, pagam ataques de ansiedade. Os despertadores funcionam mal nas casas dos meus amigos.
Juan devia ter chegado a Santa Apolónia às duas da tarde. Lembrei-me disso quando, na livraria que eu e os doentes do ambulatório do Júlio de Matos frequentamos com displicência, vi "Os Dias Inventados" de Luís Filipe Castro Mendes. Lembrei-me de ir esperar Juan ao comboio, lembrei-me que Juan devia conhecer Luís.
Quando Juan telefonou ("Perdi o comboio. Se calhar já não me calha ir") achei normal, mas fiquei a olhar para o livro de Luís que não era meu. O Luís tão embrulhadinho, em cima de uma secretária cheia de lixo, à espera de ninguém. O Luís, o doce poeta, o nosso homem em Budapeste, envolvido no papel "bordeaux" da Castil. O Luís não devia ficar assim fechado com os dias de sol bonitinhos da pátria, em Budapeste outra coisa, outra coisa será. Acabei por roubar o Luís a Juan e foi muito bom.
A firme paixão cega fui atadoe com meus males preenchi cadernos.eu dava-te os cadernos, enlevadode paixão: mortas aulas, frios invernos.Mais tarde vi teu nome no jornal:fugias do país, Revolução!Quando depois voltaste a Portugalnão quisestes lembrar-te da paixãoque num mover de olhos acenderase me levara a copiar Herbertopara esconder seus versos na carteirade onde podia ver-te de mais perto.O amor estava em visita, sem demora.Alguém chamou por ti e foste emboraLuís Filipe Castro Mendes"Os Dias Inventados"Gótica