fico sempre confusa quando se elogia alguém pela sua coerência. a coerência, só por si, não é, não pode ser, uma qualidade. sobretudo se for a coerência de ignorar a realidade. de estar errado e continuar errado. a coerência de defender stalin, por exemplo: é uma coerência admirável?
isto dito, lembro-me de uma única vez, há uns 27 anos, em que olhei cunhal e fui por ele olhada. tinha 13 ou 14 anos, e fui com amigas da minha idade a um comício do pcp. era num pavilhão não muito grande e quando entrámos estava tudo a gritar, de punho no ar. atravessámos a multidão até à frente e ali ficámos, as meninas betinhas a olhar para o papão comunista, muito quietas num mar de punhos a martelar pê-cê-pê, pê-cê-pê.
no pavilhão, a única outra pessoa quieta era ele. o rosto inescrutável, observava. depois viu-nos, ali, à sua esquerda, as meninas betinhas que tinham decidido furar o comício para ver como era. fiquei suspensa naquele olhar, na intensidade perversa, quase maléfica, do seu feixe de raios gama, sem ouvir ou ver mais nada. cinco minutos, meia hora? não faço ideia. até que alguém me pôs a mão no ombro e disse: vamos, já chega.
não tive outra ocasião. como jornalista, nunca entrevistei cunhal cara a cara. acho que nunca tentei, sequer. mas surpreendeu-me pelo menos mais uma vez: quando, recém chegada à recém formada redacção da Elle, em 88 ou 89, me lembrei de, a propósito de um daqueles artigos palonços em que se pergunta a uma série de 'individualidades' o que acham não sei de quê -- neste caso, a mulher, presume-se que com m grande --, ligar para cunhal a pedir um 'depoimento'. ele aceitou, o que me valeu telefonemas extasiados de colegas séniores, que queriam saber como tinha eu logrado pôr o sr a falar para uma revista feminina, e sobre assunto tão inusitado. 'tentei', respondi, um pouco interdita com tanto barulho.
sei agora que esta e outras atitudes de cunhal faziam parte de um jogo de escondidas que teria tanto de cálculo como de gozo --o gozo de surpreender, de desfazer a imagem monolítica que ele próprio construíra. e que era hábito nele enternecer-se com os jovens, conceder-lhes privilégios que não reconhecia a ninguém. era talvez a tal fé nos amanhãs cantarolantes. ou sentido de humor, ou seja o que for.
seja como for, era, tornou-se, uma figura familiar, quase tutelar. cresci, crescemos todos, os da minha idade, em volta desta espécie de estátua. a admiração e reverência que em tempos senti transformou-se há muito numa espécie de indiferença, até de desprezo.
sei que é considerado de mau tom criticar os mortos -- sobretudo quando acabam de morrer, já que não fazemos mais nada, na história, que analisar e criticar mortos. cunhal é já a nossa, a minha história. pertence-me. e na minha história é um inimigo. quase íntimo, como disse, genialmente, soares. mas um inimigo. não seria coerente fazer-lhe um elogio, mesmo fúnebre.
f.