Glória Fácil...

...para Ana Sá Lopes (asl), Nuno Simas (ns) e João Pedro Henriques (JPH). Sobre tudo.[Correio para gfacil@gmail.com]

domingo, junho 5

never never land

o joão peter pan diz que eu me irrito muito (nisso tem toda a razão, fui aliás eu que o disse). e que estou a ficar muito politicamente correcta (incorrecto: não estou a ficar, esforço-me há muito por ser, ou seja, por ter consciência das marcas discriminatórias da linguagem e por tentar expurgar a minha e os meus comportamentos dessas marcas).

e que me irrito por ver raparigas despidas nos clips.

pois, joãozito, sorry. eu não disse que me irrita ver raparigas despidas nos clips, digo até que não tenho nada contra isso (apre, não entrei ainda, e espero não entrar nunca, na fase j.c. espada). podia até aqui dissertar longamente sobre a minha devoção pela madonna (louise ciccone, of course) e pela forma como assumiu e recentrou o poder da mulher sobre o seu corpo através da sua utilização iconográfica.

o que eu disse, e não te faria a injustiça (que te fazes) de achar que não percebeste, é que me irrita ver raparigas despidas em certos clips, nomeadamente os clips hip-hop, deliciadas a abanar o rabo ao som de líricas impossivelmente machistas em que tudo rima com bitch e ass. se achas que não há diferença entre isso e um clip que estavas a ver no momento 'com três moçoilas a despirem-se' no seu próprio clip, como é que te hei-de explicar?

dizes tu que elas, as dos clips que me irritam, estão lá porque querem, que ninguém as obrigou. ou seja: estás a dizer que não são vítimas. certo: não creio que lhes tenham feito uma oferta irrecusável à padrinho, que as tenham recrutado na ponta de uma pistola. mas essa nunca foi a questão.

a questão não é se aquelas raparigas específicas estão ou não encantadas por aparecer naquele clip, se lhes pagaram bem ou não e se foi ou não o máximo encostarem-se ao snoopy doggy dog (não, não creio que venham daqui a cinco anos armarem-se em linda lovelace e dizer que fizeram aquilo sob ameaça, entre violações e mais não sei que bestialidades).

como não é a questão fazer comparações do género: ah, se for uma gaja a cantar rodeada de gajos despidos a abanar o rabo já está tudo bem. É que se for assim é uma caricatura: é como fazer um clip em que um negro faz de senhor de sul na sua fazenda enquanto os brancos colhem algodão, vivem em barracas e são chicoteados. nada a fazer: é assim que funciona.

a questão é como as coisas se lêem. o objectivo que servem. a questão é (nem acredito que te estou a dizer isto) a da mensagem.

e a mensagem é de submissão. é insultuosa. é degradante -- degrada, percebes? e não tem graça nem humor nem segundos sentidos -- é só aquilo que ali está.

e a irritação de que falava é exactamente a suscitada por esse tipo de olhar: o que diz, qual é o problema? o que diz: já avançámos tanto que isto já não é discriminatório nem ofensivo, como não o são aquelas piadas que passam nas tvs portuguesas sobre os homens que dão enxertos nas mulheres, porque é uma caricatura do machismo e tem imensa graça porque até já nem há discriminação das mulheres, nem mulheres espancadas, nem ninguém que ache isso normal.

podemos portanto ouvir rappers e hip hoppers a debitar rimas sobre enxertos de porrada em bitchs enquanto as bitchs sorriem dengosas à volta, tipo nós gostamos é disto, que é só rir.

e depois dizes: o sudão e mais não sei quê é diferente. porque, joão, é outro mundo, não é? lá é que há discriminação e submissão e porrada e portanto só lá é que as feministas irritadas fazem falta, para se interporem entre a multidão de pedra na mão e uma desgraçada qualquer que engravidou fora do casamento. aqui já não temos motivo nenhum para nos irritarmos. já está tudo resolvido. deviamos fazer como a zita seabra sugeria à rebecca gomperts, da women on waves, e velejar para outras paragens, onde possamos ser lapidadas, queimadas, esquartejadas. isso sim, é que era.

agora andarmos para aqui a irritar-nos com coisas parvas, quando tá tudo resolvido?

tudinho. até já trabalhamos fora e podemos usar o nosso dinheirinho e viver sós e guiar carros e sair do país sem autorização. temos máquinas de lavar roupa e loiça e aspiradores e batedeiras eléctricas para nos aliviarem no nosso trabalho doméstico e infantários onde deixar as crianças. e os gajos ajudam em casa, são tão queridos (há uns que até cozinham e tudo). e temos cada vez mais poder, dizes tu. o poder de nos despirmos em clips, por exemplo. já outros poderes levam um bocadito mais de tempo, mas que diabo. queremos o quê? tudo de uma vez? (isto até foi rápido, disse-me no outro dia outro joão, a propósito. ainda nos anos 60 a lei dizia que as mulheres eram inferiores e deviam estar submetidas ao poder dos homens, e olha para nós agora, quarenta anos depois).

em vez de me irritar, eu devia estar é grata. devo ser maluca.

vê lá tu que as raparigas casadoiras já querem outra vez ficar com o nome dos maridos. até acham graça. (graça mesmo é a conversa que tive esta semana com um meu primo, um rapaz de 44 anos que estava surpreso por uma moça lá dos conhecimentos dele não ter querido ficar com o nome do marido e mais surpreso ainda ficou ao saber que a lei permite nisso a reciprocidade. para quê, perguntava a cara de parvo dele. onde é que já se viu, um marido com o nome da mulher?)

sim, joão, tens toda a razão. tá tudo bem por aqui. o único problema são as gajas como eu, azedas e irritadiças. vai-se a ver e falta-me alguma coisa. talvez uma viagenzita ao mundo maravilhoso da terra do nunca.

f.
|| asl, 15:22

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