o debate sobre o aborto e o referendo já se tornou uma das coisas mais enjoativas da política portuguesa.
mas esta de ver a direita católica toda aos urros de alegria pela decisão do primeiro-ministro de manter o referendo e não optar pela alteração no parlamento é de vómito.
estes srs e sras nunca quiseram o referendo, fizeram o que puderam para que não tenha lugar e nada secretamente sonham com a possibilidade do seu eterno adiamento -- mas de cada vez que alguém defende que se resolva a coisa na ar, lá vem a conversa de ouvir o povo, o tal povo que eles não querem voltar a ouvir sobre o assunto desde 1998, quando menos de 40% dos eleitores apareceram a dizer de sua justiça sobre o assunto e o NÃO ganhou marginalmente e -- lembro-me eu muito bem, para o caso de eles já terem esquecido -- a direita católica, de marcelo a portas, convencida de que o SIM ia ganhar, como todas as sondagens prediziam, bradava sobre o fecho das urnas que perante tão baixa afluência o referendo não era vinculativo.
todos sabemos o que sucedeu depois: o argumento legalista e constitucionalista esfumou-se perante o resultado efectivo, e a lei votada na ar foi para as urtigas (mais de 7 anos depois, é um argumento constitucionalista e legalista que impossibilita o referendo que o ps prometera fazer 'assim que possível'. que pena que em 1998 ninguém se tenha lembrado de perguntar ao tribunal constitucional se, perante um referendo não vinculativo, não era a lei da ar que valia).
a partir daí, de cada vez que se fala em referendo, as mesmas sras e srs lembram-se como por milagre de já existe uma lei que permite o aborto em certas circunstâncias (mesmo se durante a campanha do referendo se encarniçavam em fazer crer que a escolha era entre preservar a 'vida intrauterina' ou destruí-la, sem lugar para meios termos) e que 'a solução' é fazê-la cumprir.
chegámos mesmo ao ponto de ler ontem, no público, uma jornalista da rádio renascença a certificar que a lei que temos permite o aborto por razões económicas (sempre gostava de saber que edição do código penal se usa lá em casa) e outras 'justificações' que ela entende legítimas e que o que se deseja com uma nova lei é poder abortar por 'razões fúteis' como, por exemplo, querer ir passar férias à neve (passe a demagogia, diz ela -- e a demagogia passa).
(sempre me fascinou que os mesmos que elevam a maternidade a alturas de heroicidade e santidade demonstrem sempre ter das mulheres não mães uma tão rasa ideia, vendo-as como umas azougadas absolutamente incapazes de decidir por elas próprias sobre um dos assuntos mais importantes das suas vidas. e, melhor ainda, que considerem que a melhor solução para uma mulher que quer abortar por lhe apetecer fazer ski é, para ela e para o filho que não quer ter, obrigá-la a levar a gravidez avante -- que delícia de bondade, que prodígio de lógica!)
a mesma jornalista que escreve que 'ninguém no seu perfeito juízo' pode considerar o direito de uma mulher a decidir se quer ou não ter um filho 'um direito humano'.
esta cara sra, de quem até me dizem que é boa pessoa, deve andar um pouco distraída. das suas leituras dos últimos 20 anos não constam certamente os textos e tratados da onu sobre direitos sexuais e reprodutivos certificados como direitos humanos, nomeadamente o direito das mulheres a decidir da oportunidade de ter filhos.
esta cara sra, de quem me garantem que é um amor de pessoa, muito respeitadora das opiniões alheias, acaba a chamar pró-aborto aos que defendem essa coisa básica da dignidade humana: que ter filhos seja um acto de vontade, amor e esperança, e não uma fatalidade e um castigo (divino ou não, conforme as cosmogonias).
minha cara senhora: que queira ter os filhos todos que deus lhe enviar, sem excepção, é lá consigo. e se alguma das suas relações costuma abortar para ir à neve é lá com ela -- e consigo, se a quiser denunciar à polícia.
que considere que faz sentido defender uma lei que permite abortar às 24 semanas, no limite da viabilidade, um ser humano deficiente, desde que por decisão médica (caso da lei que temos e que já deu origem a um mui instrutivo parecer do conselho nacional de ética para as ciências da vida sobre o que fazer se o produto da interrupção nascer vivo), mas ache um pavor que uma mulher possa decidir interromper uma gravidez de dez semanas (e portanto meia dúzia de células) por sua decisão autónoma e sem dar 'justificações' a ninguém, já é um bocado mais difícil de perceber -- mas ainda é consigo. que queira escrever e opinar sobre assuntos sobre os quais está manifestamente mal informada, é ainda consigo -- mesmo se lhe fica mal. que queira ser demagógica e caricatural, também é consigo -- mesmo se a define.
mas faça o favor de não recorrer ao insulto. é que nem toda a gente é tão boazinha e católica como a sra e pode haver quem leve a mal.