no momento em que selvagens andam a incendiar embaixadas, a matar pessoas e a apelar à morte de pessoas, alguém vem dizer que o problema está nos cartoons. que há coisas sagradas, intocáveis -- ao que parece, maomé e a virgem maria, não vidas humanas, direitos humanos, a diginidade humana, a liberdade de pensar e dizer o que se pensa.
liberdade até, se for caso disso, de achar que deus não existe e que portanto os profetas são uns tipos alucinados cheios deimaginação cujas palavras, bem ou mal interpretadas, deram e dão (e darão) origem às maiores atrocidades.
liberdade talvez mesmo de achar que a religião é um mal e não um bem (facto que, imagine-se, a história parece encarregar-se de comprovar).
não, não é essa liberdade, que se diria fazer parte do mais sagrado da herança e da alma europeias, essa liberdade pela qual muito se morreu e ardeu na europa, que é sagrada para o ministro dos negócios estrangeiros de portugal, mas o maomé e a virgem maria. nesses é que não se toca. sob pena de, lê-se nas entrelinhas, acontecer isto.
porque, como se sabe, foi com os cartoons que isto começou. a fatwah contra rushdie, o 11 de setembro, o 11 de março, o 7 de julho, os outros dias todos de bombas e mortes que não se guardam na memória -- bali, egipto, tanzânia, quénia -- as decapitações dos reféns no iraque, todas as guerras santas contra "o ocidente", nada disso existiu. não se invocou alá e maomé como fundamento, motivo e legitimação de cada atrocidade, não se prometeram delícias eternas aos bombistas suicidas, com ou sem virgens à discrição.
não -- a culpa é nossa. rimo-nos deles, fazemos pouco, não acreditamos no deus "deles" e se calhar nem no "nosso". como dizia a este propósito um representante da comunidade muçulmana portuguesa no outro dia na rtp (não retive o nome), "o problema é que a europa esqueceu deus".
o problema não está lá, daquele lado (porque há lados, há, e é preciso escolher), nas hordas de fundamentalistas enérgumenos que se acham no direito de exigir que pensemos como eles sob pena de extinção. não: é nosso.
porque temos de compreender. e porque esquecemos deus. e por esse crime, por essa falta, temos de pagar e pedir desculpa.
não chega morrer no autocarro e no comboio e no avião, não chega morrer no escritório do world trade center, a abrir emails ou enquanto se espera na bicha da máquina de café com o troco na mão, não chega morrer porque se quer ver a vista do restaurante mais alto da cidade. não chega.
temos também de ajoelhar e pedir desculpa.
por termos ousado substituir o maomé e a virgem maria pelo livre arbítrio e por decretarmos que as palavras blasfémia, excomunhão e auto de fé não cabem no nosso mundo. por já não vivermos e pensarmos na idade média. por acharmos que quem conspurca o nome de um homem que viveu e morreu há milhares de anos é quem o usa para legitimar atrocidades. por nos interrogarmos sobre a ausência de manifestações de muçulmanos contra os muçulmanos que fazem do deus deles uma caricatura de pavor, ódio e estultícia. por nos recusarmos a "perceber". por, imagine-se, não gostarmos de quem nos quer matar.
por tudo isto, demos a outra face -- e se nos faltar a face, demos outra coisa. o importante é ficarmos todos amigos e em paz.
(e isto tudo, atenção, sem esquecer abraão -- o tal que é o"profeta" unificador de todas as religiões monoteístas, o tal que, "no fundo", nos une. a não ser, claro, que sejamos esse tipo de gente sem classificação nem lugar no mundo que não se revê em nenhuma religião, monoteísta ou não, e se torce de vergonha e descrença perante um comunicado assim)