Glória Fácil...

...para Ana Sá Lopes (asl), Nuno Simas (ns) e João Pedro Henriques (JPH). Sobre tudo.[Correio para gfacil@gmail.com]

quinta-feira, abril 27

repetez, vous

dentro da lógica onanisto-jornalística que, como diz o jotapêagá, ultimamente parece caracterizar-me (talvez, digo eu para me justificar, porque ando sem inspiração e sobre estas coisas de israel, judeus, holocausto e etc, para não falar de correcção política, já me fartei de pensar e escrever há uns bons anitos e escuso de me pôr outra vez a inventar), vou despejar aqui um texto sobre o museu do holocausto escrito em 1993 para a grande reportagem.

vem isto (ainda) a propósito da discussão sobre 1506, nomeadamente (uma vez mais) sobre o que se passa na natureza do mal (o blogue e a propriamente dita)


O MUSEU DAS SOMBRAS

A comunidade judaica americana ergueu o seu santuário no centro de Washington, cinquenta anos depois da História. Há outros museus sobre este extermínio, mas nenhum como este . "The world must know: o domínio da dor não esqueceu a eficácia.


"There is a desert inside me. (...) There are no words in my mouth."
Elchanan Elkes, médico, Kovno, Lituânia


É assim: duas grandes portas de vidro e um átrio de pedra. Funcionários de uniforme ocre escuro, paredes de tijolo, metal, vidro, entradas gratuitas. Das 10 às 5 e meia. Turistas, excursões de escola, sapatos ortopédicos e velhos americanos rosados do Idaho. Uma pequena livraria. As estantes de madeira negra cravam epitáfios e anátemas, prémios nobel. Nomes antigos. No muro interior, junto ao balcão das informações, o sol tempera em aço a letra do velho testamento: I bear you my witness. A máquina negra, género bilhete de metro automático, quase se ignora. Explicam os folhetos que o visitante deve aí debitar os seus dados pessoais. Receberá em troca um cartão com um nome e uma história, o de alguém da mesma idade e sexo que viveu este extermínio. Um destino emprestado para esta longa marcha. Desde o início da exposição, no quarto andar, até ao final, neste mesmo átrio, máquinas iguais a esta permitem inquirir da sorte desse alter ego judeu. Mas o génio da ideia sucumbe à fragilidade do mecanismo: são muitos os 'Out of order'. Fica-se sem saber.

Começa-se por revisitar a história dos anos 30, da grande inflação alemã, das condições necessárias à instituição do terceiro Reich. Nos primeiros passos do quarto andar, um filme de sessões contínuas faz o ponto da situação. Fotos da juventude hitleriana, uniformes empoeirados, vídeos, excertos de testemunhos, documentam uma década atrás de muros de vidro onde flutuam letras negras. Segue-se por um corredor estreito, olhar lento entre pilhas de livros dados à fogueira, citações, cruzes gamadas. Do lado direito a ciência leva a melhor sobre a razão: íris de vidro e amostras de cabelo testam a cor e a raça, catálogos de étnias, compassos de metal para medir narizes e crânios. O ideal ariano não perde tempo. Com uma pequena mão da tecnologia americana -- a máquina que estampa os cartõoes do primeiro census racial é obra de uma subsidiária da IBM --, registam-se os indesejáveis. A estrela de David é o estigma.

O mundo? Organiza uma conferência. Evian, em 1938, demonstra que as convicções geopolíticas da época nãao deixam para o problema judeu mais lugar que o de uma estéril comiseração. A República Dominicana arrebata a única menção honrosa, ao candidatar-se a 100.000 refugiados. Roosevelt, que convocou a reunião, lava daí as mãos. O resto dos potentados europeus usa da mesma água. É uma pena, mas não se pode fazer nada. No livro de presenças, as assinaturas ardem no fogo lento do opróbrio. Hitler tira-lhes o chapéu. As chancelarias alemãs circulam comentários sardónicos. Afinal, parece que não são só os arianos a não gostar dos judeus... "No help, no haven": o museu acusa. Já se sabe, tudo isto se sabe, só está um pouco esquecido.
O cerco aperta-se, as sombras tamb'em. A noite de cristal é o princípio de um longo fim. O pergaminho esventrado de uma torah subtiliza aquilo que as fotografias, em troca, não deixam à imaginação. A turba sorri enquanto a judiaria vienense é obrigada a lavar as ruas após a invasão da Áustria. Freud já fugiu, Einstein também. Os outros não acreditam. É preciso que a tragédia se cumpra. A réplica de uma barreira fronteiriça listada a vermelho cerra a armadilha. Agora será sempre tudo pior, muito pior.

Um desvio. A morte a peso estreou-se nestes sanatórios de paredes tranquilas, rodeados de àrvores e colinas. Para transportar os condenados, autocarros de janelas cegas. Pintadas de branco para poupar quem? Escreviam-se depois cartas às famílias com uma explicação qualquer. Às vezes enganavam-se, enviavam mais do que uma. Mas de que servia a suspeita? As fotografias mostram crianças nuas entre batas brancas. Imediatamente antes da execução, diz o texto. Quem é que sabe? Sobrou alguém para contar como foram as primeiras câmaras de gás, como foi que morreu esta menina de quatro anos que o homem segura para a câmara?

Estes grandes planos de homens de braços no ar. A legenda diz que foram fuzilados a seguir. Os rostos deixam-se ler em reverso, interrogados em silêncio. Sim, é muito velha esta história, mas alguém pode responder a isto. Porque é que este homem sorri no embaraço da esmola? Não percebeu? Porque é que estes homens que vão matar querem tirar fotografias?
O mais espantoso a partir de certa altura não é a História mas o seu documento aplicado. Consciência, precisão, absurdo. Os homens que integravam as brigadas de extermínio rápido que logo de início começaram a erigir a solução final escreviam cartas para casa a contar os seus dias, entre declarações de afecto às mulheres e aos filhos. "O trabalho é duro, mas vai-se andando." Cansa matar.

Mas é preciso. Agora sabe-se que se vai encontrar mais do que se contava, mais do que se recordava. Provavelmente mais do que se tinha já visto. Os press-releases justificam: a queda da cortina de ferro desbloqueou os ficheiros, os documentos secretos da Alemanha de Leste e da ex-URSS, as generosidades polaca e checoslovaca. E isto é só uma amostra do que há-de vir. Numa sala larga, depois deste corredores, muros escondem a cegueira. Há crianças aqui, e espíritos susceptíveis. Só vê quem quer. No centro, os vídeos estão colocados como num poço. Experiências. Quanta pressão atmosférica aguenta um homem antes de morrer? Um a um, os fotogramas demonstram. E este professor polaco de quarenta anos e corpo deformado, primeiro prisioneiro de uniforme, depois especimen fotografado a nu, por último uma estrutura óssea. Não era preciso explicar a rapidez e a necessidade. Não era preciso explicar para que servia esta mesa metálica com uma serra mecânica que nos mostram junto a estes membros humanos decepados em desordem.

Este outro muro guarda dois ecrãs. Dois títulos. 'Accomplices'. 'Mobile Killig Units'. Um grupo de visitantes repete as mesmas imagens. Homens saem de camiões de caixa aberta, correm, fazem fila junto à vala comum. Caem sem som. Na margem direita do ecrã, rostos em diagonal esperam a vez. No outro ecrã, diapositivos. Um linchamento, três takes. Antes, durante, depois. Os homens são espancados pela multidão. Reanimam-nos com baldes de àgua. Acabam com eles. As legendas têm poucas palavras. Uma mulher de meia idade, nua, derrubada. Um filme: cadáveres desfeitos descem um rio algures na Sérvia. Obra dos fascistas croatas, lê-se. Homem ou mulher, um corpo cravado de lanças vive ainda. A câmara guarda-lhe a agonia. No help, no haven. Quem esteve aqui? Quem filmou? Quem viu?
A partir desta sala, os olhos evitam-se.

De uma ala para a outra, a ponte de vidro imprime mil nomes sobre o céu. Quem os escolheu entre seis milhões? Não há lugar para todos, só exemplos. Como esta pirâmide de fotografias que atravessa três andares, a arqueologia snap-shot de Ejszyszok, uma aldeia na Lituânia, de maioria judaica. Famílias a sépia coloridas em pastel, adolescentes de traje de banho, velhas senhoras de negro, meninos de caracóis e rendas. Década a década, até que eles vieram. Em dois dias, 25 e 26 de Setembro de 1941, 3000 pessoas morreram. Já não há judeus em Ejszyszok.

Porque é que ningu'em nos avisou, pergunta Ellie Wiesel, escritor, jornalista, prémio nobel, judeu, sobrevivente e membro da comissão de honra do museu, no seu discurso de inauguração. O mundo sabia. O mundo sabia e não bombardeou os carris que levavam aos campos da morte. Nem bombardeou os campos da morte. Perdão? Não é disso que se trata, aqui. "Acreditamos na absoluta necessidade de contar esta história. Sei que não podemos, que nunca poderemos explicar. Não porque eu não possa explicar. Mas porque não me compreenderiam."

Compreender. A memória da Europa há muito relegou estes problemas de consciência para a obrigação das efemérides ou de um ocasional auto de fé de algum criminoso nazi apanhado na rede dos Simons Wiesenthals. Nem as diatribes de Jean Marie Le Pen e apaniguados, nem a turbulência reciclada da nova Alemanha, nem vandalismos em cemitérios judeus, nem o eco mais ou menos fiel de imagens ancestrais nas fotos da ex-Jugoslávia fizeram reviver a impossibilidade que fulminou o pensamento nos anos depois da guerra. Jeshajahu Weinberg, director do museu do Holocausto, diz nas entrevistas que o intento do projecto é perturbar as conciências. Claro. Mas a que ponto se perturbam as consciências? E para quê? Com que objectivo? Para um mundo melhor? Para um homem melhor? Como esquecer que esta história acaba, no primeiro andar, com a formação do estado de Israel? E poderia deixar de ser assim? E poderia existir este museu e não ser um repto, uma acusação, o penhor de uma dívida insanável? E poderia existir um museu assim e não ser um instrumento?

Pode-se falar do dinheiro, que veio em parte do governo americano e na maioria de doações privadas. Da comunidade judaica americana, obviamente. Pode-se falar de propaganda, e de simbolismo, e de coisas óbvias como o facto de Israel dever a sua existência ao holocausto e ao sentido de culpa dos ganhadores da guerra. Expiação de um crime. Voilá. Também se pode falar da perfeição estética do projecto, concebido como uma gigantesca instalação segundo as mais recentes técnicas artísticas e perfis tecnológicos. Pode até estabelecer-se um paralelo entre esta experência e o trabalho de alguns artistas contemporâneos que exploram os temas da vitimização do corpo, da subjugação, da tortura. Pode-se dizer que este não foi o primeiro nem será o último dos genocídios, e que teve de especial apenas o facto de ter sido mais metódico do que qualquer outro que se conheça, incluindo o dos índios americanos, o dos arménios ou o dos incas e dos guaranis pelos exércitos de conquestadores espanhóis. Pode-se perguntar: o que é ser judeu? Antes e depois.

Os objectos. A madeira torturada dos beliches de um campo, o vagão de mercadorias onde mal se respira e couberam cem pessoas, as malgas de metal torcido onde se comia. E centenas de tesouras, pentes, escovas, certificados de esperança num tempo de assassinos. O cabelo, derramado numa imensa vitrine. Os sapatos. Dito assim, parece nada. É preciso ver. E o forno crematório em réplica, e a mesa de metal em que despojavam dos corpos as últimas coisas. Ouro, claro, e tudo o mais que houvesse.

A vã súplica destas tiras de papel, nestas linhas dos que não voltaram. Querido senhor, venha buscar-me... Lembre-se de mim... Ou os que regressaram, estas vozes que se ouvem num corredor de vidro, fundidas num coro insuportável. Os restos do getho de Varsóvia. As réplicas das portas. Os desenhos das crianças nos campos (as crianças desenhavam, nos campos, desenhos coloridos). Chega.

Pode-se pensar que já se sabe tudo, mas nunca se sabe tudo. Pode-se pensar que já se viu tudo, mas ainda não se viu tudo.

Também há histórias de heróis, sim. Longas linhas por países, com o sueco Raoul Wallenberg 'a cabeça, e Aristides Sousa Mendes algures para o fim. Mas é tão pouco para este silêncio.

Entre as réplicas de dois postes de betão e arame farpado, frente aos artefactos do forno crematório, Ellie Wiesel lanceta a memória. "Never shall I forget that smoke. (...) Never shall I forget those flames which consumed my faith forever. Never shall I forget that nocturnal silence which deprived me, for all eternity, of the desire to live. Never shall I forget those moments which murdered my god and my soul and turned my dreams to dust. Never shall I forget these things, even if I am condemned to live as long as god himself. Never."

Foi um filósofo alem'ao -- evidentemente alemão -- Theodor W. Adorno, que o disse: após Auschwitz, não é mais possível. Pensar. Lembrar, sem dúvida. E escrever. Lamentar os mortos, chorar os vivos. E esquecer.
Ergue-se contra isso a dor. Um museu. Mas a verdade decretada é que se esquece. Sempre. É esse o óficio da memória: fazer crer que é possivel. Pensar, viver . E não ter visto tudo, nunca.
|| f., 16:35

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