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quarta-feira, maio 3

sophia e sena, até não perceber

não li (ainda?) a correspondência entre sophia de mello breyner e jorge de sena. mas li isto.

em tempos (1996/7?), falei com sophia sobre sena. estava a fazer um artigo biográfico sobre o escritor para a grande reportagem. estivémos horas a conversar na grande sala da sua casa da graça, enquanto ela fumava uns cigarros muito fininhos que a faziam tossir e que ela apagava num acesso de tosse seca para acender outro logo a seguir.

muitas coisas nela me espantaram e comoveram -- a leveza das mãos e das palavras, a limpidez assombrada do olhar, a incrível disponibilidade para falar sobre outra pessoa com uma jornalista qualquer.

sophia gostava de sena mas não colaborou no mito. ao contrário do que insistentemente se repete sobre ele, disse-me que o seu 'exílio' brasileiro e californiano se devera muito mais a dificuldades financeiras que a perseguição política. aliás, se ela e o então marido franscisco sousa tavares, notáveis anti-regime, nunca sairam de portugal apesar das visitas pidescas, por que havia sena de ter de sair por esse motivo?

falei com muitas outras pessoas: os amigos de sena que povoam sinais de fogo, colegas do curso de engenharia e da tropa, a empregada cavo-verdiana que o pai trouxe de uma das viagens de marinheiro mercante e que, da mesma idade do escritor, cresceu com ele, a mulher mécia, amigos literatos e outros. o título que escolhi era de um poema de sena (ao contrário do que se diz aqui, acho-o um grande poeta): até não perceber.

o título, que não passou no crivo editorial da revista, foi-me sugerido por uma frase de sophia. falava sobre as biografias, as investigações sobre os escritores e outras personagens, o vasculhar dos baús, o dissecar póstumo da intimidade. 'para saber o quê? não há nada para saber'.

oscar wilde, creio que foi ele, escreveu sobre o biógrafo como o judas de serviço (e as novas/velhas teorias sobre judas, longe de desarranjarem a frase, encaixam-lhe na perfeição).

depois da publicação da reportagem, mécia de sena ligou-me numa fúria. achava que eu tinha querido denegrir o marido. tinha até uma tese esdrúxula sobre uma insinuação sobre a sexualidade do marido 'escondida' no texto. e disse-me que tinha ligado a sophia para a interpelar sobre o que dissera.

nunca mais falei com sophia e tenho pena, mas não tinha coragem para isso. é muito difícil abordar, por motivos não profissionais, certas pessoas. guardei-a nos passos de bailarina com que, ao abrir a porta de casa, me guiou ao seu jardim ('venha ver o meu jardim'), um imenso jardim com vista para o tejo desenhado por gonçalo ribeiro teles, e ali ficou, em pose, de cigarro a mão, a olhar para mim a olhar para ela no seu mundo. guardei-a nessa suave sabedoria, a de que os mistérios nunca se desvendam, a de que nunca perceberemos tudo. a de que a partir de um certo momento, de um certo nível de aprendizagem, de reflexão, de proximidade (ou de intrusão), se começa a desperceber o que se pensava ter percebido. e que isso é uma forma também de perceber, a mais perfeita: aquela que sabe que nada se percebe, e que se resigna com isso. sem deixar de tentar.

que é que isto tem a ver com as cartas? não sei bem. pode ser que tenham sido só um alibi para escrever sobre sophia e sena. ou que isto das cartas roubadas aos baús me tenha imposto a pergunta e a resposta dela. nada para saber, a não ser o que já sabíamos.
|| f., 16:59

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