Não parece, mas é uma coisa complicada. "Escreve aí 3 mil caracteres sobre o primeiro amor, escreves?". O primeiro amor? Não estou bem certa de saber o que isso seja. Posso falar daquele rapaz cujo nome e rosto não recordo — acho que era vagamente alemão, embora fosse português — que conheci nas férias grandes em Albufeira, quando tinha três ou quatro anos e que reencontrei nos verões seguintes com a palpitação de que o meu coração era capaz (bem mais então que agora). Acho que pensava nele como o meu namorado, ou pelo menos era isso que as nossas famílias diziam. Lembro-me de sonhar com as férias e com ele ao mesmo tempo, numa vertigem de luz e risos, e lembro-me da última vez que o vi, antes de ele ir para fora — seria a Alemanha? — quando nos abraçámos com tanta força que caímos para trás, sobre a calçada da FNAT, que era na altura o nome do INATEL (que entretanto foi demolido, creio). Lembro-me que rimos para não chorar, e não era pela dor da queda.
Mas não creio que seja isso um primeiro amor. Também não me parece que aquele rapaz de cabelo encaracolado e cara de menina que conheci no primeiro ano do Ciclo Preparatório e agora é tanatologista (faz autópsias, credo), que me desprezava porque eu usava óculos, tenha sido isso. Nem o outro a seguir, um baixinho de fundos olhos castanhos que era da minha turma no liceu e ia para os montes com a Dulcineia, uma repetente de cabelo oxigenado e ancas largas que vá-se lá saber porquê empreendeu iniciar os rapazes nos mistérios da carne. É certo que escrevi uns poemas a pensar neles e enchi páginas e páginas dos diários com reflexões sobre o amor e a dor e sei lá mais o quê, mas nada disso conta. Claro, houve depois o rapaz mais velho que de acordo com a tradição popular se quis aproveitar da minha inocência (coitado, sem nenhum proveito) e por quem também me lembro de ter deitado umas lágrimas, sobretudo quando me quiseram — estas famílias que não conhecem o seu Shakespeare — impedir de o ver.
Não: o primeiro deve ter sido o outro, aquele que um dia descobri no fundo de um café entretanto extinto a favor de um stand de automóveis, um café onde as mesas eram feitas de azulejos pintados à mão, daqueles com bonecos folclóricos (tanto que eu queria ter ficado com uma das mesas quando aquilo foi demolido). Passámos meses (ou terão sido semanas?) a olhar-nos de longe, horas a fio (ou terão sido minutos?). Uma vez, estava eu numa geladaria, sentada junto à montra, a ler ou a escrever ou a passar o tempo, ele apareceu e ficou ali, do outro lado do vidro, a queimar-me os olhos até ser insuportável e muito depois disso. Era uma espécie de jogo, um jogo que nunca mais joguei dessa forma. Também nunca mais soube de uma coragem semelhante àquela que um dia me fez entrar no tal café das mesas de azulejo e caminhar até à dele, dizer-lhe "olá, o meu nome é _______. Posso sentar-me?".
A coisa durou um ano, mais mês menos mês. Eu tinha treze (e depois catorze) anos, ele tinha mais cinco e levou pouco tempo a perceber que eu não estava "preparada". É falso: estava perfeitamente preparada para decantar tudo aquilo como sangue demasiado novo, para tudo o que ia doer, para esse tão previsível final infeliz. Não estava preparada para o resto, porque o resto seria ficar por ali.
(
para demolir, publicado na notícias magazine)