já sei que ninguém quer ler textos quilométricos em blogues, mas
certas coisas não podem e sobretudo não devem ser reduzidas a slogans. resolvi por isso colocar aqui uma entrevista efectuada em 2001 a esther mucznik, líder da comunidade israelita de lisboa, para a notícias magazine. não fala especificamente do líbano, é certo -- mas fala de tudo o que interessa para o caso. é, digamos, uma modesta contribuição para que se pense o que está em causa neste velho conflito e nos outros conflitos todos que este tem o condão de revelar. também se pode encontrar aqui uma resposta -- a de esther mucznik --
à afirmação de daniel oliveira, no arrastão, sobre o líbano ser, ao contrário de israel, um "verdadeiro estado multi-confessional".
Entrevista a Esther Mucznik
Afinal não somos todos judeusHá palavras que usamos assim, com leveza, sem nos darmos conta de formular um enigma. Esta é uma delas, tanto mais inquietante quanto através dos séculos foi insulto, ferrete de ignomínia e morte, causa de perseguição e extermínio. Veio a Inquisição e o Holocausto, veio a criação, pelas Nações Unidas, de um Estado para o "povo judeu", mas hoje como há dois milénios dizer o que é um judeu ou se os judeus são um povo permanece o oposto da evidência, mesmo para quem assim se assume. Nascida em Portugal numa família de judeus polacos, membro da direcção da comunidade isrelita portuguesa e da associação dos estudos judaicos, Esther Mucznik fala da religião judaica e do judaísmo, de Israel e dos palestinianos, de Jerusalém e dos fundamentalismos... e do acolhimento português.Notícias Magazine — A comunidade a que pertence tem o nome de isrelita. É a mesma coisa, israelita e judeu?
Esther Mucznik — É a mesma coisa. Em finais do século XIX as comunidades que se criaram preferiram o nome de israelitas porque a palavra judeu era conotada pejorativamente. E a comunidade em Portugal, que só é reconhecida e legalizada em 1911 pelo governo republicano, escolheu este nome pelas mesmas razões.
NM - Porquê uma legalização tão recente?
EM - O fim oficial da Inquisição em Portugal data de 1821 e não significou logo a legalização dos cultos não católicos, que eram tolerados mas assimilados aos estrangeiros. A sinagoga de Lisboa não se vê da rua porque quando foi construída, em 1904, era proibido aos locais de culto não católicos ter fachada para a rua. Como antes da República o catolicismo era a religião oficial, só com a separação do Estado e da Igreja, em 1910, é que os outros cultos são reconhecidos.
NM — Não é confuso que a comunidade se chame israelita quando existe Israel ?
EM — Sim, e a tendência é para utilizar o nome de judaica.
NM- Diz-se judia, israelita ou portuguesa?
EM- Digo-me judia e portuguesa.
NM- A sua pátria é Portugal?
EM- A minha pátria é Portugal... Mas costumo dizer que a minha terra natal é o judaísmo. Não é bem no sentido que se dá à pátria, mas do lugar donde se vem.
NM- E donde é que vem?
EM- A família da minha mãe vem de Varsóvia, a do meu pai da Ucrânia, duma zona que na altura era polaca [após a Segunda Guerra Mundial, houve zonas da Polónia que passaram a fazer parte da então União Soviética].
NM- E vieram porquê, como?
EM- O meu avô paterno era hazan, cantor de sinagoga. Tirou o curso de rabino em Frankfurt. A época era já muito difícil para os judeus, sobretudo na Ucrânia e Polónia, e ele vai com a família para Paris, onde é oficiante de uma sinagoga até que a recém legalizada comunidade daqui o convida para vir para Lisboa. A minha mãe, que chegou cá com dezasseis anos, vem mais tarde, nos finais dos anos 20, de Varsóvia.
NM- De que perseguições foram alvo os dois ramos da família para fugirem das terras de origem?
EM- A minha mãe contava que lhe puxavam as tranças, chamavam-lhe "porca judia”... E houve o facto, determinante para a saída da Polónia, de o meu avô ser advogado e concorrer a um lugar de juiz e a sua candidatura não ser aceite por ser judeu. Em relação à minha família paterna foram coisas do mesmo género, a impossibilidade de uma vida normal. Associa-se muito o anti-semitismo ao nazismo, em termos até de data. Mas em finais do século XIX e princípios do século XX houve massacres e pogroms [nome dado aos massacres de judeus no leste da Europa] muito ferozes, sobretudo na Rússia, Ucrânia e Polónia. É nessa época que há uma emigração judaica massiva dessas zonas para os EUA.
NM- E até para a zona que é hoje Israel...
EM- Sim, os construtores de Israel vieram todos da Rússia nos primeiros vinte anos do século XX.
NM - Nunca sentiu discriminação em Portugal?
EM- Sentia a diferença. Para além do facto de nas festas religiosas não irmos à escola, havia os costumes alimentares polacos... Eu por exemplo levava para a escola pão com manteiga e rodelas de nabo cru, e claro que as minhas colegas riam-se porque levavam pão com queijo ou fiambre ou doce... Outra coisa era a liberdade que eu tinha e as minhas colegas não. Saíamos com rapazes à noite, íamos ao cinema, dançar... Isto nos anos 50, quando não era de todo comum. Sempre com rapazes da nossa comunidade, porque havia um relacionamento desde a infância muito livre e próximo.
NM- Sabe que judeu em língua portuguesa é um insulto, sinónimo de forreta, mesquinho, etc. E judiaria significa maldade.
EM- Ainda será?
NM- Vem pelo menos em três dicionários. Estas expressões não indiciam sentimentos discriminatórios da parte dos portugueses?
EM- A língua é uma coisa muito forte. Acho é que a linguagem veicula estereótipos, mais que convicções. Dou sempre este exemplo: houve um inquérito europeu a jovens, creio que em 1995, e uma das perguntas era "importava-se de ter um vizinho cigano, judeu, etc?". 19 por cento dos jovens portugueses responderam que não gostariam de ter um vizinho judeu. Isto significa o quê? São estereótipos. O meu vizinho, que nem sabe que sou judia, poderia ter respondido isso.
NM- Isso é melhor ou pior?
EM- Não sei se é pior se é melhor, sei que é mau. Vou muito a escolas falar, e os jovens perguntam-me porque é que os judeus são avarentos, ou porque é que se diz isso.
NM- Como é que isso se explica?
EM- Durante séculos os judeus foram impedidos de trabalhar numa série de profissões — não podiam ter terra, por exemplo, não podiam enveredar pela carreira militar... — e portanto dedicaram-se ao que lhes era permitido. Por exemplo ao empréstimo de dinheiro, que era proibido pela Igreja mas vital para a economia. A própria Igreja recorria aos judeus! Claro que não se dedicaram apenas às finanças: foram também grandes médicos, astrónomos... Por outro lado, as perseguições implicavam a preferência por riquezas móveis, jóias, dinheiros, que pudessem levar em caso de fuga.
Em memória e pena de terem vendido Jesus?NM – Falemos então dos motivos dessas perseguições. Num dos dicionários que consultei encontrei a palavra "judenga". Fiquei a saber que é "o tributo de 30 dinheiros que os Judeus pagavam por cabeça em memória e pena de terem vendido Jesus por 30 dinheiros". É daí que vem tudo, do gesto de Judas?
EM - Não, já antes os judeus causavam estranheza pela sua concepção, revolucionária para a época, da divindade. Foram os criadores do monoteísmo ético, da ideia de um Deus único, transcendente e criador do universo. Mas também os seus costumes e hábitos alimentares os diferenciavam dos outros povos.
NM - Curiosamente, se judeu tem muitos sinónimos, um é nazareno. Jesus era ou não judeu?
EM - Claro que era judeu e nunca quis romper com o judaísmo, apenas com algumas práticas judaicas. Na época do nascimento de Jesus existiam várias seitas judaicas, e ele faria parte de uma delas. É muito mais tarde que a Igreja cristã, ao procurar afirmar-se contra o judaísmo, acusa os judeus de serem o povo deícida e até de terem um pacto com o diabo. Estes quase dois mil anos de anti-judaísmo tiveram um enorme impacto nas mentalidades, facilitando a indiferença face ao genocídio nazi. A "solução final" nazi visava solucionar um velho problema. E a responsabilidade da Igreja católica nessa matéria foi há pouco tempo reconhecida pelo papa, ao pedir perdão aos judeus.
NM- Professa a religião judaica?
EM- Para mim o judaísmo não é só uma religião, portanto não é uma questão de professar. Claro que a religião é a base do judaísmo e sou judia nesse aspecto. Mas também por partilhar uma História, um destino, uma cultura, uma memória, uma língua...
NM- De que língua fala? Do yidish, do hebraico?
EM- Da língua hebraica. O yidish, que não sei se deva definir como um dialecto ou uma língua e tem como base o alemão com uma mistura de hebraico, marcou a minha infância porque os meus pais falavam-no entre eles. É uma língua própria dos judeus asquenazim (asquenaz em hebraico quer dizer Alemanha e é uma denominação cultural que abrange os judeus da Europa Central e de Leste), tal como o ladino, com origem no espanhol, é ou era a língua dos judeus sefarditas [com origem na Peninsula Ibérica, Marrocos, etc].
NM- Quando diz que essas línguas têm mistura de hebraico, de que hebraico fala? Tenho a ideia de que a língua do Estado de Israel não é propriamente ancestral.
EM- Mas é. O hebraico sempre foi, ao longo dos dois mil anos de diáspora, um meio de comunicação. As pessoas pensam que era uma língua morta e que de repente se construiu o hebraico israelita. Não é verdade: é a mesma língua, com adaptações e inovações. Em qualquer comunidade judaica ouve as pessoas falar inglês ou francês ou português e no meio disso usar palavras hebraicas que são um código de referências culturais. Para mim, ser judia é essa complexidade de relações, não se define só pela religião. Se fizesse um inquérito encontraria quem lhe dissesse que é ateu e judeu...
NM- E um judeu católico, é concebível?
EM- Não, porque opta por outra religião.
NM- Ser ateu também é uma opção religiosa.
EM- É completamente diferente. Optar pelo ateísmo não é optar por outra religião. Do ponto de vista da lei judaica, é judeu quem é filho de mãe judia...
NM- E ter mãe judia é o quê? É ser filho de alguém que professa a religião judaica ou que vem de uma linhagem judia?
EM- É ter uma mãe que é filha de outra judia e por aí fora.
NM- Se eu agora me converter à religião judaica, e tiver um filho, isso faz de mim uma mãe judia?
EM- Sim. E seria tratada, no seio da comunidade, exactamente como os outros. Claro que estamos a falar da lei. Mas o lado subjectivo do sentimento religioso é muito importante. Ou seja, se uma pessoa diz: eu sou filho de mãe judia mas não quero ser judeu, continuará a ser considerado, do ponto de vista da lei judaica, como um judeu, mas de facto não é. Percebe?
NM- Não é fácil. Quando fala de lei judaica, fala de uma lei religiosa?
EM- Sim, há um conjunto de regras que definem toda a nossa vivência, inclusive quem é ou não judeu.
NM- É da mesma natureza das leis da Bíblia, portanto?
EM- Sim, mas muito mais recente. E esta definição de um judeu como alguém cuja mãe é judia penso que teve a ver com pogroms ocorridos no século XVII, em que houve, como é tradição nestas coisas, violações em massa. Como não se tinha a certeza sobre quem era o pai das crianças, a linhagem tinha de ser materna.
NM- Voltamos à questão primordial: há uma confusão entre a definição religiosa e a linha do sangue...
EM- E com a existência de Israel, as coisas ainda se complicam mais. Ao abrigo da Lei do Retorno, de 1952, todo o judeu — entendido como filho de mãe judia — pode adquirir a nacionalidade israelita. E houve vários padres católicos, filhos de mãe judia, que requereram a nacionalidade ao abrigo dessa lei. Aí os tribunais israelitas acrescentaram a condição de não conversão a outra religião. Claro que esses padres poderiam adquirir a nacionalidade israelita, mas pelo processo normal.
NM- Como é que se certifica o ser judeu?
EM- É a comunidade de origem da pessoa. Cá, é a comunidade israelita, as instâncias religiosas, que passam um papel comprovativo. É simples.
NM- Mas nada óbvio. O escritor israelita Amos Oz diz até que ser judeu é uma questão metafísica. Que qualquer ser humano que seja maluco o suficiente para se chamar a si próprio judeu, é um judeu.
EM- Ao perguntar a um israelita o que é ser judeu terá uma resposta diferente da de um judeu da diáspora, porque um judeu de nacionalidade israelita define-se antes do mais pela sua condição de cidadão de Israel.
Judeus negros, japoneses e chineses?NM- Uma das coisas que mais desafiou em mim a noção tradicional do que é um judeu foi constatar, em Israel, que há judeus negros.
EM- Sim, são os falashas, da Etiópia. É mais um sinal da diáspora judia. Não há judeus japoneses e chineses? Não há país no mundo onde não haja judeus. Há judeus de todos os feitios, cores e raças.
NM- A comunidade mais numerosa em Israel é a dos sefarditas, não?
EM- Já não sei, com a chegada de quase um milhão de russos... O último censo israelita indica seis milhões e trezentos mil habitantes.
NM- É um número simbólico.
EM- Sim, por causa da Shoah [holocausto — foram seis milhões os judeus que morreram nos campos de extermínio nazis]. Mas esses seis milhões de israelitas incluem mais de um milhão de árabes. Em 55 anos, Israel teve vagas de imigração sucessivas de mais de setenta países. Pode-se criticar tudo, pode-se dizer que os sefarditas não têm os mesmos direitos dos asquenazim... Mas é um verdadeiro milagre, essa integração.
NM- Mas Israel foi criado para isso, é por essência um Estado de imigrantes.
EM- Se em 50 anos Portugal tivesse levas de imigração como teve Israel, acha que tinha sido fácil? São culturas muito diferentes e díspares e por vezes um processo de integração muito doloroso.
NM- Os judeus sefarditas queixam-se de serem discriminados pelos asquenazim, inclusive nos cargos políticos. Todos os dirigentes são asquenazim: Begin, Rabin, Nethanayu, Sharon... Na verdade, não sei o que é o actual primeiro ministro, Barak...
EM- Também não sei. E cada vez se saberá menos, porque essas diferenças se estão a esbater. A escola e o exército encarregam-se disso.
NM- Mas se os sefarditas são discriminados, o que fará os falashas.
EM- Esses viveram uma situação dificílima. Desde logo, o nível cultural, dos etíopes não tinha nada a ver com o da maioria dos israelitas, e talvez à época da sua chegada os dirigentes israelitas não tenham feito tudo o que deviam para os ajudar. Mas hoje em dia os jovens falashas estão a integrar-se perfeitamente...
NM- Outra coisa que impressiona em Israel é a dificuldade de distinguir, na aparência, os israelitas dos palestinianos. É uma guerra entre irmãos que já viveram em paz, há sessenta, setenta anos atrás. É impossível recuperar isso?
EM- O ideal seria um Estado bi-nacional. Mas neste momento nem vale a pena falar nisso. O caminho para a paz é um divórcio civilizado, como diz Shimon Perez. Cada um tem de ter o seu Estado, e sentir-se livre e soberano. E os palestinianos vão ter de aprender a viver com Israel. O que não é fácil. OLe Monde publicou um estudo sobre manuais escolares em Israel e na Palestina: nos livros palestinianos Israel não está no mapa. E não se fala em israelitas, mas em judeus e sionistas. Porque só dizer esse nome significa aceitar a realidade de Israel. Há um trabalho que tem de ser feito. Apesar de tudo, em Israel não há cultura do ódio no sistema educativo...
NM- Amos Oz diz que foi um miúdo da intifada, a atirar pedras aos ingleses. Felizmente nenhum inglês lhe deu um tiro na cabeça. Fala-se disso, nos livros de escola israelitas? E dos atentados das organizações de libertação judaicas contra os ingleses, as bombas, isso tudo?
EM- Esses movimentos, como o Irgun, que defendiam acções terroristas contra a ocupação inglesa, não constituíam a posição oficial do movimento judaico de Ben Gurion [fundador do Estado de Israel]...
Israel: um Estado laico de substrato bíblico?NM- Os fundamentalistas israelitas dizem que qualquer judeu que não viva em Israel se deve sentir culpado, porque essa é a sua obrigação moral. Sente essa culpa?
EM- Fui para Israel em jovem porque acreditava que para viver como judia era lá e não aqui. E por vários motivos pessoais não fiquei, embora tenha lá toda a minha família. Acho que a grande aventura do judaísmo no século XX foi a criação de Israel, mas não sinto culpa, até porque acho que sempre houve, desde a destruição do primeiro templo, no ano de 586 antes da era comum, dois pólos no judaísmo: o de Israel e o da diáspora. O que dizem esses israelitas que citou é um totalitarismo ideológico. A realidade judaica sempre foi multifacetada e espero que continue a ser.
NM- Mas Israel foi criado como "a pátria de todos os judeus".
EM- A terra de Israel sempre foi um elemento fundamental do judaísmo. A esperança messiânica de retorno a Sião — que é uma colina de Jerusalém, a palavra donde vem o termo sionismo — permitiu ao judaísmo sobreviver. Isto no aspecto religioso. Do ponto de vista mais concreto, acontece que no século XIX, quando os judeus obtêm a emancipação em vários países e são reconhecidos iguais em direitos e deveres, se verifica o aparecimento do anti-semitismo, da teoria que defende que os judeus são uma raça inferior. E há uma desilusão profunda, que é a de constatar "afinal, nunca teremos o nosso lugar". Esse desencanto leva à ideia de que a solução é a criação de uma pátria.
NM- Ponderou-se a hipótese de fundar Israel onde é hoje o Uganda ou o Ruanda...
EM- Sim, no Uganda. Houve até em Portugal a proposta de estabelecer um "lar judaico" no planalto de Angola, que chegou a ser discutida na Assembleia Nacional... Mas o movimento sionista internacional nunca poderia aceitar outra pátria que não fosse a Palestina.
NM - E conseguiu-a, em 1947. Mas Israel foi sempre um Estado laico. Não é uma contradição? Afinal, não conheço outro país que tenha sido fundado para os membros de uma religião.
EM - É um Estado laico no sentido em que não há uma religião oficial, cada um escolhe a religião que bem entende. Porém, como diz o historiador Elie Barnavi, é um Estado laico de substrato bíblico, que se refere constantemente à Torah [livro sagrado da religião judaica]. Não tem Constituição não só porque é um país jovem mas porque foi um compromisso assumido por Ben Gurion com os religiosos, que defendiam que ela não era necessária porque havia a Torah. Mas sabe qual foi o primeiro país a reconhecer o Estado de Israel, nesse mesmo ano? A União Soviética. Grande parte dos habitantes de Israel eram judeus soviéticos, imbuídos dos ideais socialistas e igualitários, que criaram um Estado laico, livre e democrático, contrariamente ao que se passava na altura e ainda hoje na região.
NM- Há quem — incluindo israelitas — considere que Israel vive em esquizofrenia: é uma democracia para os israelitas, e só para alguns, já que existem árabes israelitas que não se sentem cidadãos de pleno direito. Isso para além do problema dos territórios ocupados...
EM- Israel é um Estado democrático. Existe separação de poderes, e eleições democráticas... Quanto aos árabes israelitas, se na lei têm todos os direitos, são de facto vítimas de discriminação. O mesmo se passa cá com os ciganos, os cabo-verdianos... São cidadãos de segunda, sem as mesmas oportunidades. Não podemos misturar as coisas.
NM- Temos um povo discriminado e perseguido durante milénios que por sua vez discrimina e persegue, e um Estado em permanente estado de sítio, de cujo território fazem parte zonas anexadas…
EM- Primeiro, sou contra as amálgamas e contra as falsas analogias. Não acho que estejamos a fazer o mesmo que nos fizeram a nós. Por muita injustiça que se cometa nos territórios ocupados, Israel não tem o objectivo de exterminar o povo palestiniano. É uma guerra...
NM- Esses territórios são parte de Israel. Vivem lá israelitas, existem colonatos...
EM- Se me pergunta se a ocupação é uma coisa boa, digo-lhe que não. E considero que o povo palestiniano deve ter o seu Estado, que não pode ser noutro sítio senão nos territórios conquistados em 1967: em Gaza, na Cisjordânia...
NM- Com Israel no meio, portanto.
EM- Sim, mas aí a culpa não é de Israel, é da partilha de 1947 que desenhou fronteiras explosivas.
NM- Há milhares de palestinianos que vivem em Gaza, em campos de refugiados, que foram expulsos de zonas que hoje são Israel.
EM- Houve de facto algumas deslocações. Mas houve também gente que se veio embora com medo, como é natural. Porém, em 1947/48, os países árabes não se preocuparam com os palestinianos. A Cisjordânia, que com a Transjordânia constituiu a Jordânia, podia ter sido logo a terra dos palestinianos. Isso vai ser uma realidade, mas negociada com Israel. A única coisa que se discute é quando, como e por onde. Toda a gente em Israel aceita isso.
NM- Os fundamentalistas israelitas aceitem isso?
EM- Nem isso nem nada. Há ultra-fundamentalistas que nem sequer aceitam a existência do Estado de Israel porque não foi criado pelo Messias.
NM- Mas não foram esses fundamentalistas de que fala que mataram Rabin por ter aceite negociar com Arafat e ceder terras em troca de paz.
EM- Foram os fundamentalistas. Se é o ramo assim ou assado... Foram os fundamentalistas que querem o "Grande Israel". E digo-lhe mais: os colonos são hoje em dia um dos maiores obstáculos à paz.
NM- Que deve Israel fazer em relação aos colonatos?
EM- Isso tem de ser negociado. Uns colonatos devem ser desmantelados, outros mais fronteiriços podem ficar e outros ainda que queiram permanecer ficam com a nacionalidade palestiniana.
NM- Mas os colonatos neste momento são praças fortes em território ocupado, armadas por Israel.
EM- Isso é hoje. Estou a falar no futuro. Até hoje, Israel manteve-se pela sua força militar. Mas a longo prazo só se poderá manter inserindo-se harmoniosamente na região.
NM- Seria injusto dizer que é uma escolha dos israelitas viver em guerra permanente. Mas um Estado em guerra permanente pode ser inteiramente democrático?
EM- Percebo o que quer dizer. Mas ao longo destes 52 anos houve Imprensa livre, houve imagens de tudo na televisão... As próprias Forças Armadas israelitas têm uma lei que permite aos soldados desobedecer se lhes forem ordenadas coisas que vão contra a sua consciência... Não vou ser demagógica e dizer que esta lei é aplicada todos os dias, mas...
NM- Vemos todos os dias na TV a forma como essa lei é aplicada.
EM- Sim e não... Porque há coisas que não se sabe.
NM- Organizações não governamentais israelitas de defesa dos direitos humanos dizem que o apuramento de responsabilidades quando um soldado mata a tiro um manifestante armado de fisga deixa muito a desejar.
EM- Mas isto é guerra!
NM - Pedras contra balas é uma coisa complicada.
EM - Deixemo-nos de demagogias. Pacheco Pereira disse-o numa crónica: cada pedra atirada por uma criança em frente a uma câmara de televisão tem um efeito mil vezes mais devastador que um tanque israelita.
NM - Está a falar de propaganda. Mas essas crianças são mortas por balas israelitas.
EM - Num artigo do jornal francês Le Monde, que é insuspeito, descrevia-se o ritual, perfeitamente orquestrado: primeiro atiram-se os pneus incendiados para atrair os soldados israelitas. Depois há crianças de sete, oito anos, que estão a afiar as pedras e que as dão a miúdos de 10, 11 ou um pouco mais. E por trás, emboscadas, estão as milícias, com armas semi-automáticas. Há uma utilização das crianças. Não ponho em causa o ódio, a raiva, a dor das crianças e jovens que vivem nos campos de refugiados...
NM - Não tenho dúvidas que as crianças de seis e oito anos que vi nas ruas de Gaza participam nisso por muitas razões, algumas delas bastante incompreensíveis, como a existência de uma cultura do martírio. Mas repare nos números: são cem palestinianos mortos contra um soldado israelita morto. Se há milícias a disparar contra os israelitas, porque é que só morrem palestinianos?
EM - Exactamente por isso que acabámos de dizer. Querem que os soldados israelitas respondam com pedras? Não dá, é impossível.
NM - Viu as imagens do pai e filho palestinianos, apanhados pelas balas dos soldados israelitas?
EM - Não vamos falar disso, essa imagem é absolutamente insuportável. E o linchamento também...
NM- Qual linchamento?
EM- Está a ver? Não sabe do linchamento dos dois israelitas numa esquadra da polícia palestiniana em Gaza. É como as notícias do bombardeamento: nos jornais vem "Israel bombardeia Gaza" em letras garrafais, na primeira página, e lá dentro, em letras pequeninas, "Em resposta à bomba colocada num autocarro de colonos". Era um autocarro escolar, de crianças! Não interessa se era de colonos ou não...
NM- Israel bombardeou por exemplo o edifício da televisão palestiniana. Acha que foram as pessoas da TV que puseram a bomba no autocarro?
EM- Não. Claro que não defendo esta escalada na violência. Mas há uma coisa que é evidente: não há Estado palestiniano, mas há a Autoridade palestiniana...
NM- O Estado espanhol não bombardeia o país basco quando a ETA põe uma bomba no centro de Madrid. Será que os palestinianos são todos inimigos?
EM- Há um estado de guerra, não podemos comparar situações que não têm comparação. Não defendo represálias, mas se as represálias tivessem sido fortes não eram só 200 palestinianos que tinham morrido até hoje. Defendo negociações, mas tem de se parar com esta violência. Israel não tem feito outra coisa senão responder, embora às vezes com meios excessivos.
NM- Mas porque é que respondem? Se o ritual está identificado, com os pneus a arder e mais não sei o quê, porque é que se deixam provocar? As zonas em que se dão os confrontos são zonas em que só vivem palestinianos. Se eles querem queimar pneus, deixá-los.
EM - Deixá-los? Acho que do ponto de vista militar isso é impossível.
NM- Bom. Em relação a Jerusalém, defende o quê?
EM- Que a capital do Estado palestiniano seja Jerusalém Este. O como, não sei, não sou política. Sei é que essa fronteira já existe: a parte Este e a parte Oeste da cidade são realidades culturais, religiosas e linguísticas completamente diferentes. O grande problema é o quilómetro quadrado dos lugares santos. Não sei resolver essa questão a não ser utopicamente: como são lugares santos judaicos, cristãos e muçulmanos, devia haver um comité religioso a reger aquilo.
NM- Foi uma grande infelicidade que os profetas tenham todos resolvido morrer e ir para o céu na mesma zona.
EM- O muro do templo é o que resta do templo de Salomão e ao lado fica a mesquita de Al Aqsa... Talvez não se deva começar por discutir os lugares santos e se deva construir um clima melhor com resoluções de outras coisas. Agora, abordar tudo ao mesmo tempo, colonatos, territórios ocupados, lugares santos... Mas não me pergunte mais sobre isto. Não lhe sei dizer mais.
Os judeus existem pelo olhar do Outro?NM- Dou-me conta de que só falámos de definições dos judeus por si mesmos. Que definição de judeu presidiu às perseguições nazis?
EM- Isso ia até à sétima ou décima geração.
NM - Era portanto a ideia de que existia "sangue judeu", "raça judia".
EM - É a grande contradição dos nazis: eles definiam como raça e sangue uma coisa que era a religião judaica. Porque os judeus que eles perseguiram eram alemães. Então ser judeu era o quê? Raça, sangue, religião? É um dos grandes absurdos da perseguição nazi.
NM - Precisamente: cheguei a esta altura da entrevista sem perceber se devo ou não usar a expressão "povo judeu".
EM - Os judeus não são uma etnia, não são uma raça, não são só uma confissão religiosa... Somos aquilo em que a vida nos transformou. Fala-se de povo judeu, mas se formos à definição do que é um povo, se calhar os judeus não o são. É complicado.
NM - Crê que a identidade dos judeus, tal como ma explicou, como a sente, existiria sem as perseguições?
EM - Não sei, porque os Ses não existem na História. Sartre dizia que os judeus existem pelo olhar do Outro, pela discriminação. É um facto que as perseguições exacerbam a consciência de si. Mas o judaísmo tem uma identidade fervorosamente transmitida e foi isso que nos manteve.
NM- Acha que o Estado de Israel teria existido se não fosse o Holocausto?
EM - A compra de terras na Palestina, a emigração de judeus para lá, o programa sionista, nasce muito antes, no século XIX. O primeiro congresso sionista é em 1897. Estou convencida que a longo prazo Israel se iria criar, mas o grande impulso foi de facto o Holocausto. Foi o que tornou Israel possível naquele momento. A ironia, se existe, é relativamente aos desígnios de Hitler de exterminar os judeus.
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