Glória Fácil...

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quarta-feira, julho 26

morrem mais de mágoa, outra vez

mais uma catrefada de texto, desta vez de há 14 anos, de uma reportagem efectuada em fevereiro de 1992 sobre israel e a palestina para a grande reportagem (da qual já postei aqui um excerto sobre uma conversa com amos oz). a reportagem tinha o nome de um livro de saul bellow -- more die of heartbreak, traduzido para 'morrem mais de mágoa'. este excerto resultou de uma incursão no sul do líbano, então ocupado por israel (antes, portanto, da saída das tropas que agora regressaram), e da visita ao aquartelamento da força de interposição da onu.onde se descobriu -- e se redescobre -- que a morte de enviados da onu na zona não é propriamente uma novidade.




De derrota em derrota, a OLP perdeu quase tudo. No Sul do Líbano resta "um grupo sem nenhuma ligação com as chefias, que naturalmente se associa às acções do Hizbollah." Timur Göksel, porta voz da UNIFIL (United Nations Interim Force in Lebanon), a força das nações unidas que tem por função assegurar a paz na zona, comenta a situação: "Os hizbollahs são meia dúzia de tipos incontroláveis, que acham que têm o mundo inteiro contra eles. Andam para aí no meio das montanhas, e de vez em quando lançam uns rockets. São ataques psicológicos." E de vez em quando, matam gente. A 19 de Fevereiro, os tanques israelitas entraram mais uma vez no território, em resposta às katiushas que atingiram a região fronteiriça no extremo norte da Galileia, incluindo uma estação de autocarros em Kiriat Shmonah. A expedição punitiva e a barreira da UNIFIL travaram-se de razões na zona das aldeias libanesas de Kafra e Yetar, a soco e pontapé. O riso de Timur parece não deixar lugar para a amargura. "Afinal, o que é que nós podemos fazer? Não estamos aqui para lutar, nem estamos equipados para isso. O que se passou em Kafra e Yetar foi apenas um pouco mais violento do que é costume." Uma pausa. O tom é mais severo. "Toda a gente devia adorar-nos, aqui. Estamos aqui pela paz, não é? Em vez disso, somos acusados de um lado e do outro. O Hizbollah diz que deixamos passar os israelitas quando querem, e os israelitas dizem que não impedimos o Hizbollah de permanecer na zona. Parte-se do principio que os soldados da UN vêm para aqui passar uns meses, apanhar sol e ganhar algum dinheiro. Não é suposto morrerem no Líbano. Há dois dias, morreu mais um, depois do embate com as tropas israelitas. É o 185º, desde que viemos para cá, em 1978. Foi atingido por um estilhaço qualquer. Porque é que um rapaz das ilhas Fidji há-de morrer aqui, a milhares de quilómetros e casa, num conflito como este?" Na parede, lê-se em inglês: "Se julga que já está a perceber o que se passa no Líbano, é porque ainda não percebeu nada." A frase tem um alcance infinito.
Ao lado do quartel-general da Unifil, a povoação de Nakura vive em relativa tranquilidade. Uma rua de lojas com Levis falsificadas, camisas Nike e rolos Kodak abastece a base. Na curva da estrada, a duzentos metros, está a barreira do exército do sul do Líbano. Não gostam de fotografias e chamam com grandes gestos.
São dois tipos perfeitos para qualquer esquadrão da morte. E também gostam de M-16. Faz sentido: é o exército israelita que lhes paga. "Estavam a tirar fotografias? São da UNIFIL?" O melhor é fingir que não se percebe o inglês deles, que nem sequer é muito bom, e sorrir. "OK, mas não tirem fotografias, que o meu oficial não gosta."
A estrada é longa até ao virar da curva. Do lado direito, o mar. Quase uma estância turística.
"Se me perguntarem onde é Beirute, não sei responder. Pode ser para ali ou para o outro lado. Viajei por toda a Alemanha, mas não conheço o meu país." Abdir tem 25 anos e vende quase tudo que tenha uma marca para falsificar. Nasceu em Thir, a poucos quilómetros, mas nunca lá vai. "Salvei-me à justa de lá morrer, na luta entre as falanges do general Aoun e a OLP. Tinha ido com os meus pais para o abrigo havia meio minuto quando nos arrasaram a casa, juntamente com o hospital que ficava ao lado." Depois explica: "O problema do Líbano é que há países que pagam a este e aquele para fazer guerra. E quem aceita dinheiro para isso não é libanês. Se eu fosse comprado assim, podia ter corpo de libanês, podia parecer o mesmo, mas o meu coração era outra coisa." E esses soldados que estão aí ao fundo da estrada, o que são? Faz o gesto de quem arranca o coração.
|| f., 15:49

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