(...) a não ser que depois do martírio, depois da inominável agonia, depois deste horror que estremece todas as noções, todos os adquiridos (que sabemos falsos mas mesmo assim guardamos) se queira agora enterrar a gis nas suas múltiplas exclusões em nome da reabilitação dos seus agressores, fazer de conta que o que se passou não foi assim tão mau e que, sobretudo, não foi, não pode ter sido consciente, quanto mais premeditado.
como se pudéssemos -- e quiséssemos -- apagar a gis e o seu terrível destino, para não termos de encarar o que aconteceu e porquê. (...)
(dos arquivos do glória fácil, gis, 25 de fevereiro de 2006)
hoje é segunda-feira. há uma semana a gis talvez ainda existisse na cave daquela construção embargada no porto. talvez o grupo de jovens que a matou tenha saído à rua como nos dias anteriores, com mais umas maldades engenhosas em mente, a caminho do seu espantoso passatempo (e há quem fale em 'crime inconsciente'? agora também há torturas 'inconscientes' de pessoas que duram dias? a sério?).
não sabemos quase nada ainda daquilo a que chamamos factos e é possível que nunca saibamos nada daquilo a que chamamos causas (para além do óbvio, e o óbvio é o que é, por mais que se queira negá-lo ou ludibriá-lo).
mas não é cedo para a indignação.
nem para a fúria: não me venham dizer com que é que me posso enfurecer e com que é que não me posso enfurecer.
e não me venham dizer que é normal que ainda não tenha sido mostrada, na tv ou nos jornais (que eu tenha visto, ressalvo) a cara desta mulher que morreu. não é preciso explicar que a exibição de um rosto é uma estratégia básica de humanização e identificação -- e que a sua recusa é uma estratégia básica de abolição.
queremos assim tanto que isto não tenha acontecido que negamos um rosto à vítima? queremos assim tanto esquecer aquilo que supostamente ainda não sabemos?
(dos arquivos do glória fácil, traços de gis, 27 de fevereiro de 2006)