seguindo a tradição das republicações da extinta gr, apeteceu-me descarregar aqui um texto que, se a memória não me falha, saiu ligeiramente modificado na revista. é grande, enorme, claro, e não tem nada com pedro arroja, portanto terá decerto menos leitores, mas é para compensar a falta de trabalho dos meus saudosos colegas de blogue.
aqui vai a posta em versão semanário.
OSCAR WILDE
A IMPORTÂNCIA DE SER INÚTILFoi há cem anos, na Inglaterra de Victoria. A primeira tragédia moderna do "amor que não ousa dizer o nome" era levada à cena por um irlandês poeta, dramaturgo, esteta e especialista em epigramas para quem a inocência era o pior dos crimes, a coerência falta de imaginação, fazer nada a maior virtude e a arte única redenção. Em nome da história, a Moral agraciou-o com dois anos de trabalhos forçados, opróbrio e exílio. "Cada homem mata aquilo que ama", respondeu ele, e morreu por causa de um papel de parede. Há quem diga que foi a solidão e a miséria, a culpa ou até a sífilis: não fosse sempre Judas a escrever a biografia, talvez o que realmente aconteceu tivesse alguma importância."
For Beauty is justified for all her children, and cares nothing for explanations " (O.W.)
Lembro-me perfeitamente. Rosto deliberado, olhos intensos e boca flácida, o corpo inerte, mordaz. Esplendor na voz, lentas frases a prumo em vazio insolente, aço a fio nas palavras sem rasto. Assassínio do senso comum como uma das belas artes ou a moral da contradição pura, em versão jogo de sociedade: nunca nada assim. Vi-o a primeira vez com Lillie Langtry, aliás, Emilly Charlotte Le Breton, a professional beauty de Jersey que, contam, chegou mesmo a ter um caso com ele antes de ele se converter aos rapazinhos e ela à família real. As versões são muitas, tantas como quem as diz, mas que chegaram a ser muito amigos tenho a certeza. Ele, que lhe escreveu uma mão cheia de poemas, lhe passou noites na soleira da porta e lhe chamava Helen, once of Troy, now of London, dizia que a tinha inventado. Ela dizia que ele era simpático e que nem sempre andava muito lavado e, como boa femme fatale, divertia-se a ignorá-lo nas soirées de cada vez que ele a contrariava. No fim foi conforme os biógrafos: uns dizem que ela, como quase todos, o abandonou, ela escreveu nas memórias, The Days I knew, que lhe mandou dinheiro e que nunca deixou de pensar nele. Como era uma grandessíssima aldrabona, o mais certo é ser mentira. De qualquer maneira tanto faz, acho-lhe graça na mesma. Faziam um par fantástico, os dois sem ter onde cair mortos, ela lindíssima e ele sempre a desconversar, a dizer exactamente o contrário do que toda a gente dizia, com aquele ar de superioridade irresístivel. Num par de meses tomaram Londres de assalto, ou by storm, como dizem os ingleses. Chegou a tal ponto que o princípe de Gales — o tal que como a mãe Vitória nunca mais lhe largava o trono se ía entretendo a catrapiscar as mulheres mais bonitas da corte —, além de se render instantaneamente aos encantos da Lillie, que acabou por ser a mais famosa e duradoura das suas amantes, escreveu ao Oscar um bilhetinho que rezava "Não conheço o Mr Wilde, e não conhecer o Mr Wilde é não ser conhecido". Em inglês fica melhor, mas em qualquer língua é obra, ainda mais porque nessa altura, em 1881, acabado de sair de Oxford e com 26 anos, Wilde não tinha rigorosamente nada que o recomendasse a não ser a personalidade, consumindo-se na dúvida, como confessou aos jornais, entre seguir a carreira de pintor ou de escritor. Ele, que mal sabia pegar num pincel, mesmo se a dada altura empreendeu ter em casa e bem à vista um cavalete com um esboço inacabado, provavelmente encomendado a um dos amigos pintores, com um dos quais — Frank Miles — chegou a partilhar no ínicio da década de oitenta uma magnífica casa em Tite Street, Chelsea, remodelada a peso de ouro por um famoso arquitecto, baptizada "Keats House" e não muito longe da de outro pintor e amigo, James Whistler. Lembro-me de o ter ido lá visitar com um amigo comum, e de, na única altura em que abri a boca, lhe ter gabado a precisão do traço. Já não recordo bem o de que era o desenho, provavelmente nem cheguei a reparar, tal era a minha ânsia de não dizer ou fazer nada que desse azo a uma daquelas tiradas arrasadoras dele. "Só falta a borboleta", respondeu, numa óbvia alusão à assinatura de Whistler — passavam o tempo todo a picar-se um ao outro, até que finalmente se deixaram de falar — relanceando-me naquele misto de condescendência e indiferença que reservava para as pessoas sem importância. Toda a gente sorriu e a conversa correu para outros lados. Passei o resto da soirée a debicar muffins em sinal de penitência e a admirar a decoração, sobretudo as famosas porcelanas azuis, num contraste perfeito com as paredes de painéis brancos. Foi só à saída, quando ele me cumprimentou e me disse para o visitar sempre que pudesse, até porque, sem que ele conseguisse perceber porquê, o padeiro lhe entregava sempre uma horrível quantidade de muffins a mais, tive a certeza que, embora tivesse sempre ocupado a monopolizar as atenções, nada lhe escapara. Escarlate dos pés à cabeça, balbuciei um agradecimento e precipitei-me para a porta, ainda o ouvindo, distintamente, dizer: "Não vejo para que é a pressa; afinal, sempre tive uma admiração especial pelo vermelhão. É o magenta que, pelo contrário, me é desagradável em extremo".
Afinal, descobri — após uma semana de desolada reclusão — quem tinha uma certa queda para as artes plásticas era Willie (William) Wilde, o mano mais velho, se bem que nunca tenha investido muito no assunto. Balançando, para não ficar atrás do irmão, entre a escultura e o jornalismo, acabou por se decidir pelo segundo. Advogado de formação embora mal tenha praticado, colaborou com várias publicações, incluindo a Vanity Fair , fez crítica de teatro — até, desconfio, das peças do mano, e não para dizer bem — e dedicou-se, segundo instruções da mamã e sem grande sucesso, à perseguição de uma herdeira rica que lhe sustentasse a indolência. Com dois anos de diferença, igualmente enormes (um e noventa) e com tendência para o balofo, expressão decalcada e um mesmo entusiasmo por não fazer nada, os dois irmãos eram demasiado parecidos para o gosto de Oscar, que se reservava uma adoração demasiado exclusiva para suportar a existência duma sua cópia ambulante, mal aproximada e claramente despeitada. Willie, que se ressentiu sempre do êxito do irmão e nunca perdia uma oportunidade de o pôr a ridículo, chegou até a deixar crescer uma barbicha, espalhando por todo o lado que Oscar lhe pagara para isso. Se o fez foi dinheiro mal empregue, porque para mim seria impossível confundi-los, mesmo antes de abrirem a boca: além de, seguindo a tradição desvairada da mãe, se vestir de modo completamente distinto (do irmão e de toda a gente), Oscar tinha uma pose tão peculiar e um olhar tão único que só alguém muito distraído poderia sonhar baralhá-los. De qualquer forma eu até acharia graça, ter assim uma caricatura de mim a flanar pelos salões, mas Oscar nitidamente não tinha o mínimo sentido de humor no que respeitava a ele próprio e à sua imagem, para ele tão inseparáveis como a trindade do Espírito Santo. O certo é que um e outro tinham um feitio tramado e a rivalidade entre eles vinha da infância e da disputa do amor da mãe, que começou por só ter olhos para o Willie para depois apostar tudo no Oscar, e com a morte dela os irmãos acabaram por cortar completamente relações. Não sei se Willie, que acabou por morrer um ano antes de Oscar e cujos infelizes gracejos a seu respeito e da sua homossexualidade George Bernard Shaw me reproduziu, terá tido oportunidade de apreciar devidamente a fineza do destino. É que a sua única filha de dois casamentos, Dolly, viria a revelar-se, bem à altura da tradição familiar, uma notável do círculo parisiense de Nathalie Barney, a Amazona, ao lado de celebridades como Marguerite Yourcenar e Djuna Barnes, nenhuma delas conhecida pela sua devoção aos homens.
Enfim, a família tem destas coisas e a dos Wildes, talvez para fazer juz ao nome, trazia já o ferro do escândalo. O pai, William Wilde, médico, especialista em olhos e ouvidos, autor profícuo de livros de medicina, arqueologia e compilações folclóricas, e, apesar das suas simpatias nacionalistas, nomeado cirurgião real e armado cavaleiro em 64, tinha já três filhos ilegítimos em 1851, quando casou com Jane Frances Elgee, aliás Speranza Francesca, poetisa fervorosa da causa irlandesa que maugrado as sólidas origens de classe média anglo-irlandesa, incluindo um assentador de tijolos, jurava sobre a sua ascendência tuscana e a sua descendência da Dante Alghieri, quando não justificava o perfil aquilino com o facto de ter sido uma águia noutra vida. Ele de estatura média e ela com quase um metro e noventa, ele reputado sedutor, acusado de ter em 62 cloroformizado e violado uma paciente, ela autora de poemas e editoriais inflamados contra a Inglaterra, capaz de se erguer a meio do julgamento do editor da revista em que colaborava, acusado de sedição da coroa, para o defender de viva voz e de sustentar em tribunal — para perder — o nome do marido no caso do clorofórmio, ambos com pretensões artísticas e produção à altura, não eram de todo o casal convencional da época victoriana. Mesmo se, é claro, a época victoriana nunca foi o que quiseram fazer dela. Filhos ilegítimos e affaires extra-conjugais era, posso garantir, coisa que não faltava, e juraram-me que a própria Sra Wilde, tão compreensiva em relação às "faltas" do marido, teria sido, ainda donzela, apanhada em flagrante com o advogado e líder parlamentar irlandês Isaac Butts, e logo pela esposa do próprio. Verdade ou mentira, o certo é que Butts também tinha o seu quinhão de filhos ilegítimos, como provavelmente dois terços da ruller class victoriana, para quem o único crime, como o meu caro Óscar viria a descobrir, era não tanto estar inocente mas mais deixar-se apanhar. E mesmo se apanhado, como no caso de Sir William Wilde, dependia muito: não foi por o tribunal ter achado que como médico teria efectivamente abusado de uma paciente que a academia real deixou de o condecorar uns anos depois. Toda uma doutrina de ocultações, compromissos e hipocrisias que, avant Oscar, já a sua fantástica mãe reduzira, digamos assim, a elipse wildeana. Sendo instada por uma amiga a receber uma senhora supostamente "respeitável", conta-se que respondeu: "Peço-lhe que não use a palavra respeitabilidade na minha casa; respeitáveis são os comerciantes. Nós estamos acima disso."
Impudente e imprudente, capaz de, aos sessenta anos, dizer a um meu amigo "quando for da minha idade, meu jovem, saberá que só há uma coisa no mundo por que vale a pena viver, o pecado" ou de, em algumas linhas
— "I should like to rage through life / this orthodox creeping is too tame for me / ah, this wild rebellious ambitious nature of mine. I wish I could satiate it with empires, though a saint Helena were the end" — predizer o destino do notório filho, a formidável e espalhafatosa Jane Elgee foi, com toda a sua pompa, excentricidade, paixão pelo escarlate, mania das grandezas e génio, bem a mãe de Óscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde. Haveria de dizer, já em Londres e no seu salão sempre sombrio, de cortinas corridas e à luz de vela em pleno dia para não destacar demasiado as marcas da idade que como Oscar haveria eternamente de sonegar, que durante os dez primeiros anos do segundo filho sempre o vestira e tratara como menina. Um dos retratos sobreviventes atesta a teoria, mesmo se toda a gente sabe que até à época eduardiana era hábito enfarpelar assim as criacinhas, machos ou fêmeas. Primeiro as pessoas decidem no que querem acreditar, depois procuram as justificações e os pretextos. Não escreveu George Bernard Shaw, depois de certificar "toda a normal repugnância pela homossexualidade — se é que é normal, coisa de que nos nossos dias se é por vezes provocado a duvidar", que o "desvio" do colega se deveria ao "gigantismo" herdado da mãe? Nunca tive oportunidade de lhe perguntar onde encaixaria Willie, não só filho da mesma giganta como igualzinho ao irmão, mas foi pena. Fiquei no entanto a saber que, se Shaw via Oscar pouco homem numas coisas, o apreciava sobremaneira noutras, nomeadamente por ter sido o único literato londrino que se lhe prontificou a assinar uma petição apelando à libertação dos anarquistas de Chicago. Mandado à fava pelos outros "heróicos rebeldes e cépticos no papel" , Shaw, que lá por também ser de Dublin nem gostava especialmente de Wilde, até o achava um snob insuportável da pior espécie — a irlandesa — dizia a quem o quisesse ouvir que nunca na vida tinha esquecido o desapego daquele gesto. E garantia que, no mesmo momento em que soube que Wilde tinha sido condenado, se apressou a rascunhar-lhe os primeiros socorros, algures num comboio, sob a forma de petição. A qual nunca haveria de servir para nada pois passados uns dias, esbarrando num teatro qualquer em Willie Wilde, Shaw deixar-se-ía amavelmente sossegar nos seus intentos pelo irmão do condenado, que punha a mão no fogo pela impossibilidade de obter assinaturas. Uma particularíssima forma de acção revolucionária esta, é certo, mas talvez seja justo refrear a má língua, até porque por essa altura andava em tournée na América e, apesar de ter visto umas coisas nos jornais e recebido um telegrama (ainda não havia telefone nessa altura) lavado em lágrimas da minha irmã, que sempre adorou o Oscar mas por viver em Sintra não se dava com ninguém do círculo, não estou bem a par de todos os desenvolvimentos. Segundo li e ouvi, houve outras petições mas todas tiveram o mesmo destino graças à cooperação entusiástica do mundo literário de Paris e Londres, com Henry James a dizer que não assinava porque assinar não ía servir de nada, Sardou que "o assunto era demasiado vil para ele se misturar nele" e até Zola a não acusar o toque. É caso para grande desilusão, se a pessoa for do género de acreditar que lá por as pessoas falarem e escreverem umas coisas libertárias, a clamar justiça e assim, estão dispostas a agir segundo esses princípios. Eu, que sei bem o meu Oscar Wilde, saio-me logo nestas ocasiões com um catadupa de epigramas apropriados, tipo, em tradução livre, "a coerência é o último refúgio das pessoas sem imaginação", ou "Nunca se deve tomar partido; tomar partido é o começo da sinceridade e a sinceridade leva quase de certeza à candura" ou, um dos meus favoritos, "São sempre as pessoas muito sensíveis que traem: não conseguem suportar a ideia de dever alguma coisa a alguém". Mesmo assim, e por causa das coisas, decidi deixar de falar ao Henry James e ao Sardou, coisa que nem me custou muito porque não os conhecia.
Mas estou a andar muito depressa: no capítulo dos Wildes é preciso ainda mencionar as duas grandes iniciações à tragédias. A primeira, em 67, tem Oscar treze anos, é a morte da irmã Isola, filha mais nova de Speranza e Sir William. Vitimada por uma febre cerebral aos nove anos, Isola deixa um vácuo entre os irmãos que jamais será preenchido. Oscar, até aí claramente o terceiro na linha de afecto da mãe, parece mesmo assim ter sentido mais o drama que Willie, escrevendo em memória da menina que cresceu tão suavemente "que não chegou a perceber que era mulher" um suave poema de mágoa e silêncio, Requiescat , e indo visitar-lhe o túmulo muitas vezes. Quatro anos depois, em 1871, é a vez de Emily e Mary, 24 e 22 anos, as irmãs ilegítimas que viviam com um tio, imoladas nas suas crinolinas de festa por se chegarem demasiado à lareira. Dos seis irmãos de sangue que todos os Verões se juntavam em Glenmacnss, na costa da Irlanda, restam apenas os três rapazes: Willie, Oscar e John, de apelido Wilson, o ilegítimo mais velho.
Com uma família tão confusa e trágica, não admira que os enredos de Óscar, mesmo que clamasse ao quatro ventos "o impossível em arte é qualquer coisa que tenha ocorrido na vida real" se percam em assassínios, complots, adultérios, orfandades e identidades duvidosas, comédias mascaradas de tragédias e vice-versa. O casamento é invariavelmente uma farsa — "qualquer casamento nasce de um mal entendido" —, e sob o celofane das aparências adivinha-se, em precípicio, o mais radiante vazio. Mas porque, apesar de irredutivelmente moderno, Wilde era um irredutível romântico, o amor surge ainda como redenção improvável, sempre tingido pelo sacrifício. "Cristo pertence ao universo dos poetas", escreveu ele em 1897 no De Profundis, a carta-testamento-acusação para Lord Alfred Douglas, o Querido Bosie de cara de gelo e alma de exterminador cujo gosto por prostitutos, dispêndio aristocrático e indiferença congénita, mais o pai marquês boxeur homofóbico, haviam de levar Oscar à cruz. Não sei como me contive, nas poucas vezes que encontrei aquele horror de homenzinho — estou a falar do Bosie, não do papá Queensberry, que com aquele treino todo de pugilato ainda me dava de certeza umas peras — e não o deixei estendido com uma cabeçada num daqueles casinos onde ele passava a vida nos intervalos de escrever livros, e foram para aí uns três, à custa da sua relação com o Oscar. Quando me lembro que foi ele que, contra o conselho e a insistência de quase toda a gente, incitou Oscar a lançar contra o papá Queensberry um processo por difamação sem pés nem cabeça — estava-se mesmo a ver que, para mais sendo mesmo verdade que a relação deles, conforme acusava o velhote, não era exactamnte platónica, a coisa só podia dar em escândalo e acabar como acabou — e ainda por cima, depois já do triunfo do marquês e quando se esperava que a qualquer momento levassem Oscar preso para ser julgado por sodomia, bastava falar de fuga para o estrangeiro para o pôr completamente histérico, fico fora de mim. O descaramento da criatura, que nem testemunhar foi, e que, protegido por Oscar e pelos advogados do pai, não teve de passar pela vergonha de ver o nome citado entre manchas fecais testemunhadas em lençóis por empregados de hotel e a procissão de prostitutos que ele próprio se encarregara de arregimentar, para depois, furioso por o amante saído de dois anos de trabalhos forçados não o querer ver, lhe escrever cartas verrinosas acusando-o de não perceber que ele, Bosie, a banhos na costa de França enquanto Oscar entrançava cestos numa cela húmida sem poder falar com ninguém, sem nada para ler e sem poder escrever, tinha de facto sido quem mais sofrera com "tudo aquilo". É verdadeiramente fantástico. E o melhor de tudo é que Oscar — que lá sabia do falava quando se perguntou "porque será que corremos para a nossa própria ruína? Porque exerce a destruição um tão grande fascínio? — acabou mesmo por voltar para ele, contra tudo e todos, para ser abandonado assim que, levado à bancarrota pelos processos (que, por acaso, Bosie lhe tinha garantido pagar com o dinheiro da família) derreteu o último tostão no aristocrático altar do amado. Palavra de honra, o coração humano nunca há-de deixar de me maravilhar, por mais que veja, ouça, leia e saiba, como Oscar escreveu na Balada de Reading Gaol , que cada homem mata aquilo que ama.
E lá me perdi outra vez. Andávamos pela adolescência e Oscar, que adorava inventar a vida de trás para a frente e achava o máximo dizer que tinha sido educado em casa até entrar em Trinity College, estava interno na Portora Royal School , onde o mano também andou. Entrou para lá aos nove e saiu aos dezasseis, com uma das três bolsas concedidas anualmente e com direito a letras de ouro no quadro de honra. Vinte e quatro anos depois, vilipendiado por conduta indecente no tribunal de Old Bailey, ouviria dizer que a direcção de Portora se dera ao trabalho de não só mandar apagar a infâmia a camadas de tinta negra como ainda de raspar as iniciais que o menino Oscar num dia qualquer de enfado riscara na madeira da janela de uma das salas de aula. Em Oxford fizeram parecido, como nos teatros onde corriam as peças dele. A Importância de se chamar Ernesto, má tradução de The importance of being Earnest, que muita gente considera a sua obra prima, mal acabara de estrear nessa altura, e para não perder o dinheiro muitos empresários preferiram retirar o nome do autor do cartaz, provavelmente sem sequer se darem conta da irónica mise en âbime do gesto, tão adequada ao tema e ao título da peça.
Em Trinity College, de onde sairia para Oxford com um prémio literário, o celebrado Newdigate, e já com a reputação de esteta apaixonado pelo gregos e contraditor impenitente a meio gás, distinguiu-se pela velocidade das leituras — juram que conseguia em dez minutos apreender o plot de uma novela, a calcorrear-lhe as páginas ao mesmo tempo que falava — pelo domínio dos clássicos, com relevo para o Agamemnon de Ésquilo, e pela incurável arrogância com que deixava colegas e professores fora de si, para além, é claro, das camisas escarlates e lilazes que já aos treze anos reclamava nas cartas à mãe. Oxford, onde se deu tão bem que anos mais tarde aí haveria de, numa das muitas visitas de nostalgia, conhecer Lord Alfred Douglas, foi o último limar de arestas do personagem. Foi lá que trocou o que lhe restava de provincinismo irlandês pela sobranceria londrina do génio, apurou a sua devoção à beleza masculina e, contra os postulados de Arnold e Pater, as duas autoridades saxónicas na matéria, estruturou as bases da sua teoria da crítica, proclamando-a como um ramo independente da literatura, com as sus regras próprias. Se Arnold dissera que se deve ver o objecto como ele é, se Pater concedera que para isso era necessário consciencializar e analisar as impressões que o objecto causa no observador, deslocando assim o centro de gravidade para o sujeito, Wilde, numa das suas típicas piruetas linguísticas, concluiu que o dever do crítico seria então "ver o objecto como ele não é". Corolário teórico de uma pose irredutivelmente individualista, este tomar do Eu como centro absoluto do universo teria, é claro, consequências bem mais vastas que o revolucionar da crítica de arte. Na História como no resto, Wilde haveria de defender que "o único dever era reescrever tudo", decretando de uma penada a impossibilidade da existênca autónoma da Natureza e da Realidade. O que, é claro, correspondia apenas à implosão de todo o edifício teórico do antigo regime, Moral incluída. Que a uns milhares de quilómetros de distância e com outro tipo de vigor Friedrich Nietzsche levasse alegremente a cabo a mesma tarefa, é talvez apenas mais uma demonstração prática da imponderabilidade do espírito humano ou da enésima lei de Wilde, a saber, "não são os grandes homens que simbolizam as épocas mas as épocas que servem de símbolo aos grandes homens". Como não falo nem nunca falei alemão não consegui apurar, por mais que perguntasse a torto e a direito, se um soube do outro. Sei apenas o que toda a gente sabe, que Oscar gostava tanto dos niilistas e do seu trágico perfil de rebeldes orfãos que lhes dedicou a primeira peça (Vera ou os niilistas), mas não consegui que ninguém me dissesse se tinha ouvido falar de Nietzsche ou se lera alguma coisa dele. Como defendia que o dever do artista é, não inventar porque isso equivaleria a falta de imaginação, mas anexar tudo, não saberei jamais se a identidade quase gémea das ideias e de não poucas frases corresponde a alguma "anexação" wildeana. De qualquer modo, e porque, como escreveu Nietzsche, "temos a arte para não morrer de verdade", posso acreditar que se corresponderam entusiasticamente e que as cartas se perderam na hecatombe final das duas vidas. Ambos têm demasiadas biografias — tantas como os Judas, como esperaria o Oscar — e não tive paciência para as ler todas, mas quer-me parecer que ninguém se lembrou de explorar esta pista. Richard Ellmann, o biógrafo de 1987 e provavelmente o mais fidedigno, coisa que Wilde seria o primeiro a censurar-lhe, sustenta uma teoria que aproxima mais os dois grandes cínicos, se bem que a uma pouco glamourosa luz. Diz Ellmann, baseando-se em opiniões de especialitas, que Oscar terá, nos seus anos de borga em Oxford e antes de declarar que ir para a cama com uma mulher era como "mastigar carne de carneiro velho" (esta é que as feministas nunca lhe hão-de perdoar e, pensando bem, eu também não), apanhado sífilis com uma qualquer prostituta. E teria sido esse contágio, ocorrido aos vinte e poucos anos, que não só o teria impedido de, na época, casar com Florence Balcombe, a grande paixão da adolescência entretanto roubada por Bram Stoker, autor de Drácula, como lhe viria a causar a nunca explicada morte aos 46 anos. Eu por mim não vejo evidência nenhuma disso, até porque Oscar, que como toda a gente sabe nunca foi uma pessoa regrada na sexualidade, não só nunca falou a ninguém desse assunto como casou com Constance Holland e teve dois filhos, Cyril e Vyvian, sem que aparentemente nenhum deles, por mais que sofressem com o abandono a que os votou e com as consequências do escândalo, desse mostras de qualquer contágio. Claro que isso não prova nada, mas francamente quem é que quer saber se o Oscar morreu de sífilis, ou, como outros garantem, de uma infecção no ouvido contraída durante o tempo de prisão? E a não ser que se interprete como loucura a mudança de personalidade que nele ocorreu a partir da entrada na prisão, em 95, ao passar a ver o segredo da vida no sofrimento em vez de na arte e ao já não ser capaz, como ele próprio confessava, de "rir da vida como era costume", não vejo qualquer interesse nesta precisão.
"Nascemos todos reis e, como os reis, muitos de nós morrem no exílio". Se Oscar Wilde estava predestinado a gravar na sua vida cada epigrama, este não foi excepção. Obrigado a mudar de nome e a saír de Inglaterra, transmutada de corte a seus pés em país de fúrias que o perseguirão de dedo em riste por toda a parte, acabará em Paris, no Hotel de Alsace, à mercê de alguns amigos fiéis e da inesperada bondade de estranhos. O homem que seduzira, arrasara e enraivecera toda uma geração de beaux esprits , cuja aura sem obra deixara em 1881 a super-actriz polaca Maria Modjezka absolutamente perplexa ("Não percebo. Quem é este rapaz? Que é que ele fez? Que livro, que peça escreveu, que quadro pintou, para que toda a gente lhe dê tanta atenção? É verdade que fala muito bem, mas o que é que ele fez? Não percebo."), que decretara a gloriosa inutilidade da arte e carregara toda a sua glória no prodígio único do nome haveria de apagar no alias Sebastian Melmouth (de Melmouth The Wanderer, romance de um antepassado paterno), passar os derradeiros três anos a esbarrar em velhos camaradas que lhe viravam a cara e chegar a esmolar bebidas nos cafés de Paris. Rico graças — enfim — à morte do marquês de Queensberry, a besta Bosie recusar-lhe-à qualquer ajuda, tratando-o de egoísta e puta velha. De Constance Holland, a mulher escorraçada, o seu anjo mártir que tanto quis reconciliar-se com ele e o deixará viúvo em 18xx, receberá a única pensão que de todo não mereceu, insuficiente para as dívidas acumuladas em anos e anos de suites, champanhe e cravos verdes. Não voltará ver os filhos, não voltará a escrever, mesmo se chega a prometer um ajuste de contas com Reading Gaol, a Balada do Rapaz Pescador, dedicada à alegria do amor como a outra o fora à tragédia, baseada nas últimas indulgências da costa francesa e italiana como a outra o fora na morte de um condenado. E, como Cristo na cruz, há-de viver para se renegar: "Escrevi quando não conhecia a vida e agora que a conheço não consigo escrever". Mas há-de ressuscitar em todo o esplendor, encontrado o caminho no hotel onde agoniza os últimos dias de Novembro de 1900, um século vencido e outro a seus pés. "Either this wall paper goes, or I", citam as escrituras como suas últimas palavras. Ou digo eu, Judas de serviço.
Falta muita coisa neste evangelho, mas não tenho mais tempo. "O público é maravilhosamente tolerante: perdoa tudo, menos o génio", costumava ele dizer, com a exacta leveza de quem julga estar a fazer jogos de palavras e não a traçar o próprio destino. Afinal, se "toda a vida é uma limitação", umas são mais limitadas que as outras, e a dele aproximou-se mais do impossível que definiu como arte do que alguma vez terá sonhado. Se soubesse quantas décadas após a sua morte Portora acedeu enfim a reabilitar-lhe o nome e que foram necessários cem anos para que Oxford lhe seguisse o exemplo, saborearia devidamente o seu cálice de profecias. Mas se pudesse saber disso saberia também do resto, do quanto a desgraça o fez grande, do quanto o nome maldito se fez imortal, do quanto ele, que antes de ter obra era arte, é toda a sua obra. Do quanto era doutro tempo e doutra raça, ou, como diz Richard Ellman, One of Us. E do quanto, nunca antes como depois dele, foi tão importante ser, saber ser e querer ser inútil. Acho que era isto o que eu, que nunca tive ocasião, gostava de lhe dizer.