ao joão gonçalves (portugaldospequeninos.blogspot.com -- perguntinha)
sabe, joão, esta menina normalmente não responderia ao que escreveu. mas por ser para si, transijo (eu também sei ser patronising, vê? não custa nada).
não sei o que é isso do aborto 'livre', joão. nem o que seja ser de tal coisa adepta. acho que adeptos é mais futebol clube do porto e assim. mas defendo, sim, que qualquer mulher possa decidir, dentro de um prazo de tempo razoável, se quer ou não levar uma gravidez a termo.
não estou muito à vontade com abortos de 'fim de tempo', embora a lei que temos, a tal que o joão, segundo já li, considera aceitável, os permita até às 24 semanas em casos que vão da trisomia 21 (mongoloidismo) à falta de membros, passando pela hemofilia, anoftalmia (ausência de olhos), hiv, acondroplasia (feto anão), etc. creio aliás que ninguém está à vontade com estes abortos -- a começar pela grávida. mas defendo que devem ser feitos se ela assim o decidir (na verdade, de acordo com a lei que temos, é uma comissão de médicos que toma a decisão, depois de a grávida decidir. pense bem no que isso significa).
mas quando isso -- um aborto de 24 semanas -- já é possível legalmente e até com a concordância do joão, qual a sua objecção ao aborto até às 10 ou 12 semanas por decisão da mulher? vai-me responder que é porque os outros seres têm defeito? que, como me explicou o penalista costa andrade tentando interpretar o espírito da lei, 'a sociedade não considera poder exigir à mulher o esforço de criar um filho com aquelas características'?
note bem: a sociedade exige à mulher que tenha um filho que não deseja se ele for 'perfeitinho', mas não exige que ela tenha um filho que não deseja se for 'anormalzinho'. que querida, a tal de sociedade, que também é muito compreensiva com as mulheres quando são violadas, de tal modo que as deixa abortar até às 16 semanas um fruto desse crime (desde que um médico acredite que o crime aconteceu, já que a lei não exige queixa-crime nem indícios investigados pela polícia -- nem podia, isso era coisa para levar uns dois anos) -- porque não acha exigível que sejam obrigadas a dar à luz uma criança que resulta de sexo 'não consensual'.
portanto a questão aqui é o sexo consensual -- a tal 'paródia' -- e o que permite exigir. o joão, pelos vistos, exigir-me-ia a mim, por exemplo, que tendo engravidado desta ou daquela maneira -- por exemplo porque um preservativo se rompeu, a pílula se esqueceu ou não fez efeito (sabe que acontece, não o tomo por desinformado, quanto mais), o intra-uterino endoideceu ou, imagine, me entusiasmei e me esqueci dessas coisas todas (e quem nunca se entusiasmou e não se esqueceu de tudo que, para usar uma expressão sua, dê notícias quando for vivo) -- tivesse um filho que não desejasse apenas por ter engravidado durante 'sexo consensual'.
e eu respondo-lhe, joão, que não acredito que nessas circunstâncias você, que eu não conheço de lado nenhum senão de o ler, tivesse um filho (caso pudesse engravidar, coisa que, até melhor prova, não pode). e respondo-lhe que o não faria não só por si mas também porque todos os bebés devem ser desejados e amados -- é um direito que eu lhes desejo inalienável. a expectativa da felicidade não a garante, claro, mas ajuda um bocado, e nisso e em muitas outras coisas eu estou com os founding fathers.
nada disto, como é óbvio e será óbvio para si, apesar dos seus tiques facilitistas a la vasco pulido valente, tem nada a ver com fazer do aborto 'um vulgar contraceptivo'.
claro que pode haver quem assim o veja -- quem não se importe de se sentar numa marquesa ginecológica e pôr as pernas naqueles suportes de metal e sentir-se esgaravatada por dentro com o auxílio de um bico de pato e umas pinças e umas lâminas de curetagem e passar uns dias com hemorragias e a hipótese de umas dorzitas desagradáveis, sem poder 'entregar-se à paródia' num certo prazo de tempo e a pensar que pode sempre correr mal (e estamos só a falar dos desconfortos físicos). deve haver quem não se rale com a tortura medieval, também. mas acha o quê, que as mulheres que querem fazer abortos dia sim dia não devem ser obrigadas a ter filhos 'para aprenderem'? que os médicos sabem melhor que as mulheres se elas devem ou não ser mães? acha que ser mãe deve ser, em vez de uma decisão, um acidente? uma desgraça?
estou a vê-lo, joão, de joana, a entrar no consultório, de cinco semanas, a explicar ao médico que estava a usar preservativo e se rompeu e não quer ter aquele filho e acha que devia poder abortar e a descobrir que a tal lei que o joão tanto preza não aceita o caso da joana, porque ela 'se deu à paródia' e, até ver, não está grávida de um deficiente/doente congénito nem está com uma doença, física ou psíquica, incompatível com a gravidez e não querer estar grávida não entra nos critérios, por menos semanas que tenha a gravidez. fazia o quê, joão/joana? tinha a criancinha obedientemente, ou agarrava em 450 euros e ia ali a badajoz num pulo?
ah, é verdade, joão, ao ser joana, veja se não se esquece de tomar a pílula (só dá celulite, problemas de circulação, possibilidade de avc e já não me lembro mais quantas cem coisas desagradáveis). ou de ir trocar o intrauterino (vai ver que é óptimo: uma vez, na esquire inglesa, que como sabe é uma revista 'para homens', asseguravam que a dor é tão forte que não é possível aguentá-la e só se pode pôr e tirar o aparelho com anestesia -- e imagine que em portugal os médicos fazem mesmo sem anestesia). ou de obrigar o tipo com quem estiver a pôr sempre preservativo. ou então, claro, de não se dar à paródia, sua desavergonhada.