queria ver se não começava já a irritar-me -- afinal, não vou para nova, gasta-se um ror de dinheiro em cremes e séruns para contrariar o efeito das irritações e ainda nem sequer foi marcada a data do referendo, quanto mais do início da campanha -- mas lá terá de ser.
na sequência da minha postagem de uma entrevista efectuada em 1998 a uma enfermeira da zona de lisboa que faz abortos (está lá para baixo, procurem, não tenho meio de fazer o link neste mac) surgiram os comentários expectáveis da parte de alguns defensores do não, particularmente entusiasmados com alguns excertos, nomeadamente aquele em que a senhora descreve o produto embrionário às 8 semanas como 'uma espécie de gelatina' ou 'um pudim de gelatina'. uma reacção, digamos, normal para quem considera que aquilo que é assim descrito é uma pessoa tão válida como, sei lá, eu (provavelmente até mais, já que eu para essa gente valho manifestamente pouco, como defensora do sim, e portanto 'abortista', ou 'abortófila', como eles dizem).
a linguagem banalizadora e às vezes quase humorística dos profissionais de saúde, sejam eles facilitadores de abortos ou cirurgiões do cérebro, é sempre um pouco chocante para quem não está daquele lado. é portanto normal que se reaja da forma como descrevi. o que sendo normal vindo de quem vem mas não deixando de ser encanitante na sua suprema estultícia e má fé é outro tipo de comentários, como os que encontram na descrição das clientes da enfermeira 'motivos' para votar não. exemplo: ela diz que a maioria das clientes dela são de classe média-alta e aparecem muitas adolescentes e raramente 'gente humilde'. um génio do 'não' acha que isso é um argumento para votar não. ela diz que lhe faz impressão fazer abortos depois das oito semanas porque 'aquilo' começa a tomar forma. o 'não' rejubila: aquilo afinal tem forma, até a fazedora de anjos reconhece (não se percebe a alegria: não defendem eles que mal o espermatozóide penetra no óvulo 'aquilo' já é uma pessoa? então qual a importância de ter forma?). ela diz que há mulheres que recorrem aos seus serviços mais de uma vez: é a felicidade total na bancada anti-escolha (afinal, as gajas são todas umas malucas, só querem é abortar, concluem, temos de as impedir e forçar essas doidas irresponsáveis a ter os bebés para aprenderem).
note-se que quem assim 'raciocina' despede da vista uma questão, digamos, despicienda. estamos a falar de aborto clandestino e pago. pago a 400 euros ao tempo da entrevista, mais caro agora. este é o aborto pago por quem tem dinheiro para o pagar -- não decerto as mulheres do bairro de lata ou as imigrantes que ganham o salário mínimo. só pode ser pago pela classe média ou média-alta. só pode ser pago pelas mães classe média de adolescentes classe média. as outras, as 'humildes', tomam misoprostol (para quem não sabe, vendido sob a forma de medicamento para o estômago e que causa o aborto) no quarto lá de casa e, se o fizerem depois das nove semanas, correm o risco de sangrar até morrer (nada que impressione muito muitos 'defensores da vida', mesmo se elas, essas mulheres, têm forma completa e não se parecem nadea com pudins de gelatina).
pequeno problema: estamos a falar de algo que se passa. AGORA. ANTES. E NO FUTURO, se o não ganhar. estamos a falar de alguém que ganha dinheiro com o não. o preço cobrado por esta enfermeira, sem ecografia nem anestesia e com riscos que ela própria assume quando diz que 'se falha a electricidade no meio do procedimento tenho de acabar à mão, por raspagem, que é mais difícil', é mais elevado que o estipulado pelas clínicas de badajoz. a diferença de preço é justificada com o risco -- e de facto justifica-se. é assim, a lei do mercado. nada a fazer.
depois das 8 semanas, 'aquilo' toma forma e faz impressão à enfermeira. faz impressão a toda a gente, senhores e senhoras do não. a toda a gente. e faz ainda mais impressão quando estamos a falar do que a lei em vigor permite: abortos às 24 semanas. abortos às 16 semanas. fazem-se, sabem? aliás os abortos de 20, 22 e 24 semanas são mesmo os que mais se fazem em portugal. aí não há qualquer hipótese de falar de pudim de gelatina. mas disso é melhor não falar, não é, senhores do não? porque não dá jeito admitir que, das duas uma: ou são contra todos os abortos, independentemente de a concepção ter sido causada por violação e independentemente de o seu produto ser mongolóide, hemofílico, anão ou qualquer das outras 'anomalias' que permitem terminar a gravidez legalmente nos hospitais portugueses, ou são a favor da lei em vigor, como muitos proclamam, e então desculpem lá mas ainda vos falta explicar qual a diferença, do ponto de vista do embrião/feto, entre morrer porque tem uma deficiência e a grávida não quer ter um filho deficiente e morrer porque a grávida não o quer ter, deficiente ou não.
não estamos aqui, excelentíssimos defensores do não, a escolher entre um bem e um mal. não é assim que funciona. porque a existir, a escolha é sempre entre dois males (o mal de matar o embrião e o mal de obrigar uma mulher a ter um filho que rejeita) e porque nem sequer é essa a escolha. porque a enfermeira da entrevista existe e vai continuar a existir. o misoprostol existe e vai continuar a existir. e impedir as pessoas de ter a possibilidade de interromper uma gravidez de forma legal e segura e o menos traumática possível -- e o mais cedo possível, já que prazo legal será só de 10 semanas -- não as vai impedir de abortar.
por fim, um esclarecimento: sei que esta entrevista é polémica e eventualmente chocante. e que há defensores do sim que prefeririam que este tipo de elementos não fossem divulgados -- podem ser 'contraproducentes', dizem. postei-a sabendo disso, porque creio que este debate tem estado sistematicamente arredado da realidade e ancorado apenas em ideologia e histerias. e porque creio que é possível -- e desejável -- tentarmos ser um pouco mais honestos. jornalisticamente falando, até acho graça que haja quem, lendo a entrevista, se pergunte se eu a reli antes de a postar -- por acreditar que estou a dar 'um tiro no pé'. não espero que quem assim pensa (?) saiba o que é jornalismo ou que seja capaz de entender que alguém, defendendo uma posição, seja capaz de publicar um trabalho jornalístico em que admite dar argumentos 'ao outro lado'. não houve censura nesta entrevista, lamento. não houve a preocupação de puxar a brasa a uma qualquer sardinha. só de tentar fazer todas as perguntas e obter todas as respostas, 'boas' ou 'más'. confundir honestidade e busca da verdade com falta de argumentos ou de discernimento, como fazem alguns defensores do não, define-os cabalmente na sua infeliz e raivosa cegueira. não é uma novidade, claro. é só uma confirmação.
talvez eu, como o cardeal patriarca, tenha de concluir que não é possível um debate 'sereno' sobre esta matéria.