em 1994, em reportagem pela grande reportagem, fui a goa. do encontro trouxe este texto e o travo de uma paixão paradoxal.a propósito da viagem presidencial à índia, apeteceu-me postá-lo. aqui vai.
GOA
AUTO DO CORAÇÃO CATIVO
Foi no tempo dos reis e dos impérios o lugar das Indias. De Tiracol a Cotigao, 3702 quilómetros quadrados de conquistas, a espada e a cruz fundidas na pedra dos altares, nomes, uma língua em testemunho. Dos corpos das cores e dos gestos risca-se um mapa estranho. O logro da geografia faz delírios. Deve ser isto a lei do tempo igual ao espaço, a ideia certa do mundo. Mesmo se no fim o sangue a pulso faz impossível o olhar.
Nunca se sabe o que esperar deste desencontro. Duas horas até Frankfurt, oito até Bombaim, do universo pressurizado da Europa para este céu estranho. Um calor molhado na pele, turbantes, saris, rostos recortados num Atlas antigo, uma espécie de sonho. O relógio e o corpo entregam-se com reticência à lógica dos fusos, à improvável lei das viagens. Não há evidência nesta vertigem, razão nenhuma.
A India, portanto. Bombaim, de táxi para o centro. Nove milhões de habitantes, dote da lusa infanta Catarina de Bragança em núpcias com a coroa britânica. Três séculos depois, o primeiro assalto das ruas é uma torrente de som. Buzinas, gritos, automóveis ao desbarato, peões a todo o vapor num jogo indecifrável. Em cada semáforo, um cortejo de mendigos afronta o sol escaldante, mulheres de olhos prostrados e bébé no colo, a mão estendida numa língua rápida, maleitas que estremecem a civilização, visões nauseabundas, corpos obscenos. Sem pernas, um homem balança nas muletas antes do sinal verde, uma figura envolta em panos prescruta na mão sem dedos a janela entreaberta do táxi, crianças cobertas de poeira fazem enxame, batem nas portas, gritam. Estrangeiros, turistas, dinheiro. Choque de culturas: É assim que o jargão corrente classifica esta perda momentânea de coordenadas, este caleidoscopio de snapshots que leva de enxurrada a clareza. Mesmo se nas imagens desconexas se intui um significado supremo, um segredo primordial à espera da chave. Mesmo se se sabe que, de algum modo, o desvario dos sensos recentrará o pensamento. O sentido encontra sempre o seu caminho. Como na grandiosa Gateway of India, o arco triunfal de pedra amarelada erguido à beira do porto para pompa do rei George V e consorte na ocasião da sua visita à jóia, em 1911, com o Taj Mahal, hotel de noventa e um anos, a dois passos. De modo a que da suite real, lá do alto do sexto andar, o monarca pudesse a cada amanhecer certificar o domínio da coroa e a India a seus pés, o mar em moldura contínua. E regressar, sonâmbulo sobre as águas.
Da mesma maneira chegar a Goa: como Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque, no sulco dos descobridores, dos conquistadores e dos impérios, em paródia e nostalgia. Gravar a costa para sul, subir o rio Mandovi, atracar em Panjim. Num fim de tarde, como no cruzeiro lento que todos os dias às sete larga do mesmo cais em peregrinação folclorica, americanos, alemães, ingleses, indianos dos sete cantos da União, um ou outro japonês, boquiabertos na batida do Malhão goês e dos corridinhos de dois pares que em miscelânea de trajes — sari, madeirense, ceifeira, meia nazarena — exibem nos últimos raios de sol, com catedrais abraçadas em palmeiras, cruzes carregadas de grinaldas e fortes de além mar em fundo, a naturalidade da aculturação, mergulhando no olhar português um dardo envenenado. Como se fosse possível regressar, como se fosse verdade que deixámos saudades.
Goa, Gomanta, Gopakapura, Gove. Kouba para os gregos antigos, Sindãbur ou Sandãbur para os árabes. Séculos de dominações, invasões e conquistas. No século XI, a dinastia hindu Kadamba transfere a capital do território da zona de Chandor para Goapuri, hoje Goa Velha. Foram e vieram os sultões, em 1488 o reino dos Adil-Shãkis, de Bijapur. Chegado a Calecute em 1498, Vasco da Gama estabelece trato em Cochim. Ameaçado pelos árabes, incomodado pelo Samorin de Calecute, procurara um lugar mais aprazível como base. Em 1510, Afonso de Albuquerque e a sua armada lutam pela posse da cidade de Goa contra Ismael Adhil-Shãh, o sultão de Bijapur. Do alto do monte santo, o campo de batalha e a terra conquistada a perder de vista, Albuquerque encomenda a vitória a Nossa Senhora do Rosário. Em seu nome, é
eregida em 1544 a capela de torres como ameias que hoje domina a Goa indiana, pórtico gótico-manuelino, murais hindus e túmulo maometano. Mais precisamente o de Catarina Piró, plebeia amante do vice-rei Garcia de Sá cuja truculência não se perdeu em Camilo. Com a sua memória, o horizonte apaixona-se no estertor da conquista, a espada manchada do comandante à derradeira luz, a armadura pesada na prece. Possível crer nesta epopeia daqui.
Ao fim da alameda, uma escadaria ocre com duas vendedeiras de flores aos pés e uma vaca negra, meio búfalo, em pose. O sol da manhã fustiga as pétalas nos cestos, a água atrai as moscas, o ar pesa de doçura e luz. Ao cimo das escadas um portão e uma praça de terra batida rodeada de arcadas, no centro uma torre circular de imagens coloridas e um edificio mais baixo, as linhas de um templo. Cá fora, uma estante azul de madeira amontoa sapatos, junto à planta sagrada, "faz para eles as vezes da cruz", explicam-me. Um homem escuro de sarong, o peito dilacerado por cicatrizes múltiplas, sauda. "Do you speak english?" Sorridente e aplicado, inicia o tour. "O nome deste templo é Manguexi. Há 450 anos, Goa foi conquistada pelos portugueses, que destruiram muitos templos hindus, incluindo aquele em que originalmente estava esta imagem de nosso senhor Shiva, que foi salva e trazida para aqui." Indica o pequeno boi de prata, aquele que carrega Shiva, as imagens do deus que dança, a simbologia das mãos, as três portas esculpidas em prata maciça que definem os graus de intimidade com a oração. Aos não crentes são vedadas a segunda e a terceira, e só os sacerdotes podem franquear a última. Uma família aproxima-se, homem à frente, mulher um pouco atrás com a criança, atravessam o segundo arco, postam-se em
adoração. Ao fundo, junto à imagem do deus, uma pequena fogueira e um enorme cilindro de ponta arredondada, indiscutivelmente fálico: Shiva-linga, o que quer que queira dizer. O espaço não é muito maior que uma sala, a distância para o deus poucos metros, o tecto baixo. Respira-se um perfume de flores e tranquilidade, um recolhimento sem pompa. À despedida, o sacerdote de peito lacerado — ferros em brasa da iniciação, paga-se caro para ser padre, por aqui — inquire nacionalidades. Antecipa-se qualquer coisa, uma surpresa, uma reacção qualquer. "Portuguese?" Sorri em silêncio, sem ironia no adeus.
De Ponda para Margão, a estrada serpenteia susto a susto, camiões a toda a brida num apito furioso, vacas plantadas em cada curva de focinho alçado e postura real, peões de outro século, cesta na nuca e passo arrastado. Nos campos é tempo de colheitas, as plantas douradas e os saris intensos, vermelho e azul solto ao vento em cenário perfeito. Máquinas nenhumas, o grão debulha-se à mão sobre o alcatrão da estrada, liso e duro como as melhores eiras, com os automóveis em passagem lenta a dar uma ajuda.Acenam à partida, riso aberto: os turistas são tão parvos, fotografam cada coisa.
Em Margão, antes de um lauto almoço no restaurante Longuinhos, a fazer honra à conotação especieira da cidade, uma paragem na casa de Ivo da Costa Azevedo e esposa Maria do Carmo, industriais de conservas e fabricantes de vinho. Ele goês, ela portuguesa de Castelo Branco. Veio aos 26 anos, em 1960, nunca mais voltou. Os filhos estão cá, a vida é aqui, mesmo que passados trinta e três anos mantenha a determinação de não aprender sequer o concanim, o dialecto da região, quanto mais o inglês. "Os criados ao principio riam-se", explica o marido, "Mas como têm muita facilidade para as línguas lá vão aprendendo eles o português." Que remédio, sorri ela, adivinha-se uma vontade de ferro sob esta face tranquila que em 61 afrontou as ordens de Salazar para repatriar as "senhoras" nas vésperas da invasão. "Fui eu, a mulher do governador, que se recusou a abandoná-lo, e uma senhora já muito de idade que eles nem foram incomodar. Como nessa altura era rofessora, foram à escola buscar-me para me enfiar no barco à força, mas eu felizmente não estava lá, E quando vieram cá a casa mandei os criados dizer que não estava, que estava escondida em parte incerta. Ficaram furiosos mas lá engoliram. Ele — o Salazar — não queria que portuguesa nenhuma ficasse cá." Teve medo? "Não... Quer dizer, tive medo dos soldados, que tinham uns olhos muito penetrantes. Eram sikhs do Punjab, dizia-se que como tinham vindo para lutar e não tinha havido luta estavam com aquilo na ideia. Eu e o meu marido estávamos muito curiosos, até fomos muito caladinhos ali a cima onde eles estavam aquartelados vê-los de longe, como se fossemos ao jardim zoológico. Eles olhavam mas não diziam nada, com aqueles olhos terríveis." Não tem saudades de Portugal, estes anos todos longe? "Bem... Eu tenho muito medo de andar de avião, sabe? Meti na cabeça que me acontece alguma." E de falar português, tem saudades? Há muita gente com quem falar? "Já só os velhos é que falam português. Embora hoje em dia se fale muito do tempo dos portugueses." Ri, encolhe os ombros, troca um olhar cúmplice com o marido: "Agora só se diz bem dos portugueses, passou o mau, só ficou o bem." O que é Portugal para si? "Sinto-me portuguesa, ainda. Mas naturalizei-me indiana por causa da fábrica, é melhor." E em relação à India, sente-se parte dela? Ou só de Goa? "É difícil dizer. Se sou goesa, indiana ou portuguesa. Não penso muito nisso, sabe?"
Vá-se lá saber porquê, toda a gente acha que é uma cidade, Goa, em vez de um estado, pequeno para a India, do tamanho do Algarve mais ou menos. No mapa, os onze distritos declinam-se em tons pastel, duas vezes a cor-de-rosa, como a gozar o sonho. Devemos ter decorado estes nomes e outros, no tempo em que a trilogia indiana já não ornamentava a nuca despida de Salazar, hirto e um pouco enviezado no seu retrato oficial de escola primária, mas permanecia nossa no programa educativo. E se a toponimia actualizada, com os seus Chandranaths, Gadiawaddas e Gaodongrems
se afigura de longe demasiado truculenta para as sílabas das crianças, a colecção de denominações terminadas em lim ou im — Bicholim, Loutulim, Ambelim, Canaguinim, Candolim, por aí fora — parece vagamente familiar mais que não seja por tão pronunciável e encantatória. Para não falar de Nuvem, Vasco da Gama, Mercês, Piedade, Chorão. É estranho, mas de cada vez que aparece um nome assim, mesmo já conhecido do mapa, perpassa uma euforia breve, como se fosse preciso encontrar a tabuleta para crer que sim, que é verdade, que as letras são as mesmas neste território longínquo, que mesmo que não houvesse testemunhas havia esta lingua, esta ideia de continuidade. Resistência, como na capela que algures numa estrada faz sorrir: Our Lady of Boa Viagem, o inglês rendido por uma vez ao sortilégio de outro idioma.
Panjim é a capital do estado, uma cidade ruidosa como cópia em muito pequena escala do caos de Bombaim, corpos cruzados em slow motion, veículos a toda a velocidade, táxis-moto, este contraste entre a respiração etnica e o advento da tecnologia que faz o preço de um rolo de slides equivalente ao jantar de duas pessoas num bom restaurante, tudo o que é artesanal ao preço da chuva, o resto os olhos da cara. Nas esquinas espalham-se alpargatas de couro, colares, especiarias, flores, os vendedores acocorados naquela posição impossível dos asiáticos, pacientes, insistentes. Muitos
mendigos, chagas, aleijões, mulheres de testa colorida, peles rasgadas por manchas brancas, deve ser isto a pelagra, dizem os manuais que é falta de vitamina B. Às vezes avançam, agarram, apetece sacudi-los, o sangue europeu a falar alto, o apelo da decadência demasiado para os sentidos, mesmo se a dança das cores extasia, mesmo se no ar a podridão e o sândalo, caril e flores à mistura, atordoa a análise, mergulha noutro estado, vida e morte em corrente contínua, exaltada. Nunca como aqui esta hegemonia ancestral se revelou tão forte, a seiva dos Albuquerques é um gume de aço na correcção política. Ruyard Kipling, filho de Bombaim esculpido nas escolas inglesas, lá devia saber: "East is East and West is West and never the twain shall meet."
Baga Beach. As dunas suaves guardam barcos de pesca, o mar desfaz os últimos suspiros da monção, palmeiras numa dança suave. O enlevo tropical dura pouco. "Sister, sister." Uma rapariga cravejada de espelhos e enfeites de prata chocalha a mercadoria, cobertores no mesmo género, um sorriso promissor. Chegam mais duas, exigem uma promessa, mão na mão, olhos nos olhos: sexta feira, no mercado de Mapusa, devo procurá-las. "Promise? You promised." O porte de ciganas não desmente a raça, foi daqui que eles partiram, há centenas de anos, para fazer a volta da prisão. Talvez mesmo de Mapusa, do grande mercado que às oito da manhã de sexta já mexe no torpor do sol, mil bugigangas falsas e verdadeiras, panos, coletes de brocado, hortaliças exóticas, braçadas de coentros, flores, sacos de açafrão a colorir o ar, sementes desconhecidas, laranjas e maçãs em pilha, galinhas de patas presas num cacarejo infernal, rapazinhos cobertos de sândalo a impingir colares ao nariz, ouros, madeiras, mendigos, rostos atravessados de prata, uma multidão em corrupio, sister, sister, um labirinto, cestos de peixe seco numa nuvem de moscas, mil odores em concorrência, o estômago em náusea profunda, na nuca o calor e os gritos, nuvens de pó, pimenta e caril, regateios e pregões. Um inferno de delícias por algumas rupias.
"Hoje vamos a Velha Goa." O doutor Carmo Azevedo, goês de pura cepa, "indiano de formação portuguesa", oitenta e cinco anos, alto e seco como os sábios hindus dos filmes, ofereceu-se para fazer a visita guiada das catedrais. Não ocorre outro nome perante estas torres a pino que esmagam os campos em redor, ou antes não esmagam, numa simbiose bizarra entre a herança de colunas, florões e cal viva e as palmeiras, os saris, cabras e leitões negros a pastar no átrio, um cruxifixo imenso, o silêncio da selva. "As igrejas das Velhas Conquistas são todas assim, desproporcionadas." Dizem que são perto de 450 em todo o território mas Carmo Azevedo sorri, é um exagero. A diferença nas conquistas tem a ver obviamente com a época da ocupação portuguesa, mais antiga ou mais recente, e Velha Goa — não confundir com Goa Velha, pré-portuguesa, dos Kadambas — é o lugar da antiga cidade, a do esplendor e da glória, a Goa dourada das lendas, capital do Império Português do Oriente. A curtos quilómetros de Panjim, um deserto povoado de templos que se atravessa como uma miragem, o múrmurio verde do matagal em fundo, o céu quieto, e de súbito uma igreja magnífica, dilatar a fé e o império, um arrepio, um fervor maior que a vida a testemunhar uma civilização esquecida. Cairam as casas, os palácios e as pessoas, dizimadas por pragas sucessivas, ficou isto. A São Francisco Xavier, Goencho Saiba (o senhor de Goa), jesuíta de origem basca canonizado em 1622 e cujas relíquias — ou o que resta delas, após o ritual desmenbramento dos santos — repousam em Goa na igreja do Bom Jesus encerradas num caixão de cristal e prata trabalhada, expostas de dez em dez anos para gáudio dos muitos crentes e do Turismo regional, é atribuída a predição deste fim. "Ninguém a tomará mas por si acabará", terá dito o santo que, apesar de carregar a lenda de um milhão de conversões, achou por bem, perante "tanta idolatria", requisitar ao papa o envio do Santo Ofício para terras da India. O alto pontífice não se fez rogado e a Inquisição indiana, desfechada já após a morte de Xavier, disputa a palma de suprema selvajaria, última das grande pragas a arrasar Goa.
"Era inevitável." Aleixo Manuel da Costa, 85 anos, historiador, autor dos três volumes do Diccionário da Literatura Portuguesa
que a Fundação Oriente vai agora editar, não tem dúvidas que Portugal tinha de sair. E que a lingua portuguesa vai desaparecer em Goa. "O concanim é a lingua oficializada, nem sequer existe à venda um dicionário concanim-português. Só na Biblioteca, e é do fim do século passado." Conta histórias numa voz esforçada, o rigor da última monção deixou-lhe uma gripe renitente. As lendas cosem-se nos factos, anedotas de Afonso de Albuquerque, malaguetas e mangas que quase toda a gente já esqueceu e ninguém recolhe. O governo indiano tem mais em que pensar, Portugal acordou tarde. A cultura portuguesa em Goa é um fenómeno marginal, um especimen em vias de extinção, por mais que se apressem as obras do novel centro cultural, aqui no Bairro das Fontainhas, ao virar da esquina, um edifício branco e verde muito
bem restaurado. Para fazer o quê? Se nem no mapa se encontra o antigo Bairro Latino! Há-de haver uma explicação qualquer para que o tenham apagado, se o Altinho, por exemplo, o velho bairro da aristocracia, belas casas elevadas sobre Panjim onde hoje não vive uma única das velhas famílias, ainda lá figura. O caso é tanto mais difícil de entender quanto há uns quinze anos se decretou a impossibilidade de desfeitear as fachadas dasFontainhas, de construir de novo. Ninguém sabe explicar, encolhem-se ombros, um sorriso irónico. Para bom entendedor,ainda no ano passado, a propósito do consulado recém-aberto e do centro cultural o embaixador da India em Lisboa punha em perspectiva o entusiasmo goês por Portugal e vice-versa: que a India não é só Goa, que o que os goeses querem é passaportes para a Europa. Má vontade? Aleixo da Costa lembra que o boletim do instituto cultural Vasco da Gama, fundado em 1924 e renomeado Meneses de Bragança pós 61, passou a ser editado em inglês. "O governo indiano não dava dinheiro se fosse noutra lingua." Maria Julieta Gomes da Costa Andrade mora muito perto, ao fundo da rua. Em 1989, ajudou a fundar o instituto indo-português. Há cinco anos, lançaram cinco centros de ensino de lingua portuguesa. "São cursos muito básicos, de sete meses, para compreender o português. Tivemos 121 alunos em 90/91... Mas temos muita falta de apoios, livros, jornais... O Instituto de Educação de Macau
manda-nos livros, mas são adaptados para eles e não para nós. E nem um dicionário concanim/português temos. Até nos faltam os de inglês/português." Portugal não ajuda? "Todos prometem, vêm e vão, e não mandam nada." E o ensino oficial, como é que está? "Agora de há uns anos para cá há mais escolas com o português como segunda língua. Mas mesmo assim são poucas." As palavras têm um som repetido, de abandono. E manifestações vivas da cultura portuguesa? "A única missa em português de Panjim é aos sábados, às seis da tarde. Tudo o que seja português, eles..." O resto da frase cai no poço dos subentendidos e das inevitabilidades. Um sabor amargo como o que assalta à visão das obras de modernização da Sé Catedral, imensa mesmo em termos das igrejas de Goa, onde o bispo resolveu mandar instalar lâmpadas fluorescentes em cada coluna, cabos de electricidade amarelos por toda a parte. "Estava muito escuro cá dentro, explica um sacritão, em inglês claro está, sem perceber a pergunta. E estava-se à espera de quê? Candelabros? Milagres? Em Santa Inês, o cemitério dos grandes de Panjim, a floresta tropical sepultou anjos e cruzes antigas, espadas e linhagens de pedra. Ler inscrições é uma aventura, entre espinhos e a suspeita de rastejantes bem pouco fantasmagóricos. Os nomes e as despedidas têm um ar de família, surreal entre as palmeiras anãs, eterna saudade, descanse em paz, sua esposa e filhos. O rapaz que veio mostrar o sítio abana a cabeça, que deviam vir limpar isto, é uma vergonha. "De vez em quando limpam, quando vem alguém
importante." Nem toda a gente é, evidentemente, sensível aos símbolos, por mais óbvios. "Nehru veio duas vezes a Goa. Nunca teve tão grande recepção como Mário Soares." O que quer que isso signifique, o goês Aleixo da Costa não acredita que mude alguma coisa. "Tenho muita pena. Que os portugueses tenham saido, que tenha de ser assim. Mas nasci
português e vou morrer português na minha casa. Porque fora dela não me aceitam."
É uma porta pequena, uma sala curta, na penumbra. O vulto grandioso, recorte de gesta nas mãos e nas vestes que flutuam
como num vento furioso — o da História? — faz mais pequeno o lugar. "Camões o génio da pátria pelo mundo em pedaços
repartida". Isto com muitas maiúsculas, para sublinhar o sentimento. No pedestal, o nome do benfeitor, o Diário Popular,
dedicatória declamada, muito à moda da época: Oferta de Portugal da India, da India de Portugal. Data 1960, autor não está lá. Subindo a escada e virando as costas ao naufrago, entra-se no claustro dos vice-reis. Num banco, duas mulheres de sari
descascam melancolicamente tangerinas sob o olhar arguto de três figuras de Estado. Craveiro Lopes, Américo Thomaz e Salazar, muito dignos, espiam do fundo da sala a fileira de governantes, telas engrossadas pelos retoques num ou noutro rasgão, feições empasteladas por mão inábil. Um estudo dos rostos revela-se interessante, ainda que seja fácil perder-lhes a conta, aos senhores de espada e semblante mais ou menos carregado que ao longo de quase cinco séculos sujeitaram esta terra. Há um muito moreno, moreno mesmo de mais para vir de Lisboa. Espanto, ignorância: É Bernardo Peres da Silva, o único vice-rei indiano das cartilhas, ainda que, precisamente, lá não venha. Afinal este senhor, nomeado pela rainha D. Maria e pelo regente D. Pedro IV em 1835, governou apenas dezassete dias, parece que a clique portuguesa", na fina expressão de Carmo Azevedo, não estava para essas liberdades e fraternidades, houve perseguição, revolta, massacres. Tudo esquecido, já ninguém fala destas coisas, excepto gente a soldo da memória, como os membros da associação dos Freedom Fighters, um rés do chão escuro na praça principal de Panjim. V. N. Lawandee, famoso por estas bandas, não fica nada entusiasmado ao ver o seu escritório invadido por uma jornalista portuguesa. Pergunta três vezes a intenção como se fosse surdo, compraz-se em dificuldades. Não pode falar, está muito ocupado, talvez amanhã. Não quer explicar o seu part-pris contra o consulado português e o futuro centro cultural, a natureza da ameaça. Vai assinando papéis que um ajudante lhe enfia na secretária, expressão fechada. Se tem alguma coisa contra os portugueses? Não, até gosta. Portugal também, no seu sítio. Lisboa, uma linda cidade. Mas medo de quê, hoje? "Os seus antepassados mataram, torturaram, massacraram..." Está bem, mas e agora? Os ingleses também colonizaram a India e não é por isso que não falam inglês ou se opõem aos consulados, aos Brittish Councils. Um correlegionário de aspecto mais simpático vem ajudar: "Você não entende. Estava ali, ouvi-a falar, percebi que era portuguesa e senti qualquer coisa aqui (aponta o peito) e quis vir-lhe falar. Entende? Estamos contra o consulado, o regresso dos portugueses não por nós, mas por causa das pessoas que em Goa sonham com o retorno ao passado. Não espero que compreenda isto."
Na sala do museu, o retrato mais pequeno, mais escondido, é o de Vassalo da Silva. Colocado fora do alinhamento, só numa parede, uma foto a negro e branco a que o destino empresta uma aura qualquer. O exame sapiente revela o olhar froxo e a boca sem firmeza de quem em 18 de Dezembro de 61 largou o posto, não ensaiando a morte por Portugal que o presidente do Conselho encomendara. Nem um arremedo disso. Dos fracos não reza a História, diz esta parede triste onde o penduraram, a contrastar com o lugar de honra do odiado Salazar. Nem a India sem Portugal lhe perdoa, quanto mais o Portugal da India.
De vez em quando, as casas solarengas da nobreza de Goa enfeitam as páginas das grandes revistas de decoração ou de viagens, o chic colonial em versão indo-portuguesa, madeiras escuras em arabescos infinitos, retratos de senhores com espada e título, porcelanas chinesas, bambus, veludos surrados, espelhos velados, lustres, mosaicos gastos sem conserto. Aida Meneses de Bragança, da família do jornalista de oposição Luis Meneses de Bragança, acabou de regressar da sua segunda casa. Vai abrindo as portas, com muitas desculpas devido ao estado da casa: "É muito difícil arranjar pessoal doméstico, sou eu que faço tudo, e com o passar dos anos as forças vão-me faltando..." A memória do antepassdo
pró-anexação não lhe traz, aparentemente, quaisquer benesses além de um instituto com o seu nome. Há cinco anos, o governo indiano decidiu expropriar os dois braços da família, o seu e o do primo Bragança Pereira, senhor da outra metade do palácio. Foram-se os arrozais, ficaram os impostos. "Tenho que os pagar, senão põem-me em tribunal." Há coisas para as quais o único remédio é achar graça, na India como noutro sítio qualquer. Sobretudo com uma casa assim, enorme e deserta, com tantos cuidados. Ainda agora gastei uma fortuna no tecto da sala de baile, que estava todo podre. Não havia igual, tive de mandar fazer o mais parecido." Milhares de rupias para cobrir o salão de baixos relevos, os lustres ainda estão no chão para limpar. No quarto ao lado do seu, sobre a cama, a tela de um antepassado levou uns retoques. "Fui eu, estava toda a quebrar-se." Ao lado, um armário bizarro: serviu de transporte ao enxoval da bisavó, num navio de Portugal. Onde o chão de mosaicos partidos à maneira árabe com grinaldas e motivos geométricos se gastou foi preciso atamancar. "Já ninguém fazia este trabalho. Sabe, enquanto os outros acrescentam as casas eu mando a minha abaixo." Melba Gama Pinto, da linhagem dos Pintos que lideraram uma rebelião frustrada contra Portugal, diz o mesmo. À entrada da casa, um banco de pedra faz sorrir Carmo Azevedo, que vai visitar a prima. "Vinhamos aqui nos fins de tarde, conversávamos..." A mulher é desta casa, uma senhora de oitenta anos de porte e olhos verdes espantosos. Vivem em Panjim num pequeno apartamento, perdida a casa dos Azevedos. Melba teve mais sorte. Pequena, muito mexida, vive com o irmão e três cães samoeidos no grande casarão. Mostra as fotos das irmãs desaparecidas, dos pais, uma carta em que doa a casa ao governo após a morte dos donos, com a condição de ser mantida tal qual. Abre as portas do oratório, oblige nas casas antigas, mostra as preciosidades. Uma fivela de prata do cinto de um antepassado, uma caixa de jóias vazia. Pisca o olho: "Estão no banco, aqui não há segurança nenhuma." À saída, oferece uma canjinha.
Nos Colaços, em Ribandar, perto de Panjim, a dona da casa também tem a paixão dos cães. Passam o dia no jardim em frente ao rio, sob as arcadas da varanda que corre o edifício. De manhã, as palmeiras filtram o sol nas janelas, a vida é um
suspiro tranquilo. Mas basta sair a porta da rua para cair no buzinão de uma estrada de poeira vermelha, feita a rasar o solar.
A nossa senhora que no século xix salvou no mar a vida ao juiz antepassado e que hoje guarda a casa do seu altar não lhe valeu nesta aflição. Paciência, como remata Rosa Dias, de Loutulim, outra dona famosa muitas vezes citada graças à mansão de família. Depois da morte da mãe ficou só, ela e um ou outro criado. Como os outros, vive de rendimentos e das recepções que de vez em quando lhes alugam as salas. E da pensão do marido, devido à qual permanece portuguesa. "Tenho de pedir todos os anos permissão para ficar aqui. Mas sinto-me absolutamente goesa, sempre senti." E Portugal? "Tenho muitos amigos portugueses, muitos irmãos a viver lá. Agora fala-se muito de Goa... Fico feliz por terem saudades, claro. Mas vêm mais portugueses agora que quando isto era português. Dantes não ligavam nenhuma, era só para se encherem." Conta a história, já ouvida, de uma "governadora" que andava de casa em casa a pedir "lembranças" para levar para Lisboa, de furtos e manigâncias que também se atribuem aos governantes indianos, de inventários que não se fazem ou perdem misteriosamente. "Isto estava muito abandonado. Por ironia, quem começou a fazer alguma coisa foi o Vassalo e Silva. Se tivessem algum amor pela terra não perdiam isto."
Uma noite, nas Fontainhas, já tarde, o taxista resolve fazer companhia num passeio. Em Panjim a iluminação pública não é uma prioridade, a vida nocturna acaba cedo. Se alguma coisa se mexe, é quase de certeza uma vaca a rondar os caixotes do lixo ou alguém que dorme ao relento. Agnello, nome italiano de cordeiro para um goês católico cujo português ficou pelo caminho, tem vinte e três anos, o liceu e ambições na vida. Fala de um casal de amigos portugueses, arquitectos, que conheceu o ano passado e de como gostaria de os visitar em Portugal, talvez mesmo em permanência. "Os meus pais falam do tempo dos portugueses. Que era melhor, que não havia corrupção, nem roubos, as ruas limpas..." Os tempos mudaram em todo o lado, Agnello, e depois que querias tu que acontecesse? Que os portugueses voltassem? "Eu digo as coisas como as vejo: os hindus que vêm do sul e mudam tudo, sujam tudo. Não têm nada a ver com Goa, com o que Goa era. Vejo o que acontece nos sector público, como eles têm preferência sobre nós em tudo. Tenho amigos hindus, mas na altura de dar um emprego, eles preferem dá-lo a um hindu. Vai-se a uma repartição pública, é preciso untar as mãos a toda a gente, para fazerem aquilo que têm obrigação de fazer. Estão a tomar conta de tudo. You see, talvez a maioria da minha geração não pense assim, mas os velhos goeses sim, queriam os portugueses de volta. Os bons homens portugueses, como o meu pai lhes chama."
Portugueses, portugueses, não há muito mais que um punhado em Goa. De sangue, quer dizer, não em espírito. Mestiços, a que por vezes se dá o nome de descendentes — expressão que aqui quer dizer várias coisas, desde os que descendem dos primeiros casamentos mistos efectuados por Albuquerque ao produto de cruzamento de uma família nobre goesa com uma portuguesa — também há poucos, partiram quase todos em 61. Os nomes portugueses são produto de baptismos de antanho, não certificados de raça. De português resta o sentimento, a língua e a cultura, nem sempre ao mesmo tempo. Wilfred de Sousa, goês, católico, é o ministro de Estado de Goa, correspondente ao primeiro ministro do território. Militante do Partido do Congresso, ex membro do Goa Congress, cujo objectivo seria "defender a cultura goesa" mas que desapareceu por "falta de expressão", é o primeiro católico de lingua portuguesa a ocupar o cargo desde a libertação ou invasão, ou lá como lhe queiram chamar. Diz Walter da Costa, seu amigo pessoal e membro do Instituto Indo-Português, que "ele é todo pela cultura goesa", tendo mesmo sido o principal responsável pela abertura do consulado, contra as "forças reaccionárias para quem o que estava em causa era o regresso de Portugal."
Goesa, vinte e poucos anos, estuda em Lisboa. "Agradecia que não mencionasse o meu nome." Medo de quê? "Porque assim posso falar mais à vontade. Sabe? O que eu sinto é que estamos a ser invadidos. Estamos a perder a nossa identidade. Goa era a pérola do Oriente, agora já não é nad." Porquê? "Não vê? Estamos a perder as casas antigas. Podiamos desenvolver mas não demasiadamente. Estão a transformar isto, que era um lugar único, num pedaço qualquer da India, igual aos outros todos. De cada vez que saio durante uns tempos, volto para uma Goa diferente. Para pior." Suspira. "Tenho pena que os portugueses tenham saido de Goa. Podiamos ter sido independentes mas os portugueses não deviam ter cortado connosco. Claro que os indianos não trataram nada bem os portugueses. Em Goa aprendemos a entrada na India como uma libertação, para os portugueses é uma invasão." Não gosta da India? "Não é isso. Vê-se que a India não tem futuro, mas por outro lado gosto dos valores indianos, hoje em dia temos mais valores que a Europa. E aqui em Goa absorvemos a parte boa da India e de Portugal. O que nós não queremos, quando digo nós digo as pessoas da minha idade, é que os outros indianos venham para cá. Queremos manter a nossa cultura. Porque eu sinto-me goesa, não indiana. Tenho vergonha deles, não sabem comportar-se." Acha que Goa está perdida? "Está perdida ou vai perder-se."
Não sei o nome dele. Está ali, atrás daquela porta, no lugar onde durante séculos se arrecadaram vice-reis a caminho de um túmulo português. Ele não, não é vice-rei nem grande de nada, apenas um espaço de silêncio no regateio da História, um dos três soldados que cairam na escaramuça de 1961, para pagar a obstinação de Salazar, a fuga de Vassalo da Silva, a fome dos impérios. Dizem que a mãe não o quis de volta, que em plena cerimónia oficial se ergueu para lhe recusar voz de herói. "O meu filho é um mártir, deixem-no lá estar, está muito bem onde está." E aqui ficou,atrás do altar da igreja de S. Caetano, o corpo entregue por nós.
No último dia, outra vez Bombaim. O táxi para o aeroporto atravessa a cidade nocturna, uma da manhã nas ruas quase desertas. Nas bermas, nos passeios, junto aos muros dos prédios, tendas improvisadas, corpos ao relento, uns ao lado dos outros a perder de vista, mulheres, homens, crianças amortalhados nos trajes do dia. Quando se abre a janela, o vento sufoca sob estes milhares de corpos, a podridão dos rios, a lama dos bairros de lata. Danação e pestilência, luxúria e santidade, os contrários entrelaçados num sentido único, sem brechas.
A vida a abraçar a morte, tão longe do delírio ocidental das distâncias. É fácil perder os pontos cardeais, aqui. Anil Samarth, historiador indiano que nos últimos anos se tem dedicado ao estudo das relações entre a India e Portugal considera que as duas culturas só se reconheceram nos dois últimos séculos, quando as prioridades comerciais e a dilatação da fé se esvaziaram, dando lugar à ideia de permanência. Certifica aí a grande diferença entre os portugueses e os outros, nomeadamente os ingleses, cujo aproach foi sempre transitório. "Os únicos invasores que ficaram mais tempo que os portugueses foram os muçulmanos, que se fundiram na India, que hoje é o resultado da relação entre a cultura hindu e a muçulmana. E o objectivo último do meu estudo das relações indo-portuguesas é compreender como é que o meu país lidou com as realidades que lhe eram estranhas, o que absorveu e o que pôs de lado. Talvez através da identificação e análise dessas realidades, consiga chegar àquilo que na India é imutável. A sua essência." Sorri: "A existir, claro."
A existir, a essência das coisas pressupõe a demárche inversa. Por exemplo, da India de Portugal ao Portugal da India, Portugal sem India, Portugal só. Ser português. Perder tudo para encontrar o caminho, como na Bíblia se diz ao homem que tem o mundo mas não sabe da alma. Deve ser por isto que se viaja, para regular no coração a impossibilidade, decantar em nada o que se julgou saber. Tentar, porque no fim não faz diferença nenhuma. Como tão bem viu Duarte Barbosa nas suas crónicas de há três séculos, não é por conhecermos as fábulas que deixamos de as querer escrever.