Glória Fácil...

...para Ana Sá Lopes (asl), Nuno Simas (ns) e João Pedro Henriques (JPH). Sobre tudo.[Correio para gfacil@gmail.com]

sábado, fevereiro 24

querida gi

Pronto. Passou um ano. Já não me lembro bem das primeiras notícias. Confusas. Havia um homem num poço num prédio abandonado. Um travesti. Um sem abrigo. Um toxicodependente. Um brasileiro. Eras um homem, primeiro,  com nome de homem: Gisberto Salce Júnior, 46 anos, sinais de espancamento, um bando de miúdos de instituições do Porto como suspeitos, tinha sido um deles a contar a uma professora uma parte da história, o onde e quem e o quê que levou a polícia e os bombeiros ao corpo seminu a boiar no fosso de dez metros.

Depois eras prostituta e  ex "rainha da noite transgender", tinhas HIV e hepatite C, foras afinal uma mulher bonita, um sorriso rasgado nos vestidos de star e na cabeleira longa, loira, ruiva, morena. Vieram as fotografias, devagar, só nas revistas e nos jornais, poucas, muito poucas. Nunca na TV. Lia-se um jornal e eras homem, lia-se o mesmo jornal e eras mulher. Gisberto, Gisberta. Ouvia-se um responsável de uma das instituições onde viviam os rapazes que te espancaram e eras "não propriamente um exemplo". Talvez mesmo um agressor, talvez mesmo um perigo, se não real pelo menos representado, de "pedofilia", contra o qual os miúdos -- sabíamos agora que adolescentes entre os 11 e os 16 -- "tinham decidido fazer justiça pelas próprias mãos".

Veio a autópsia e a descrição das queimaduras, dos indícios de violação anal com pedaços de madeira, do teu estado de sida terminal (tinhas fugido de um centro de tratamento onde a Abraço te tinha internado), do facto de teres morrido afogada e "não em consequência das agressões" que te foram inflingidas. 

Trato-te no feminino, Gisberta, porque foi mulher que escolheste ser e foi, parece que terá ficado mais ou menos provado no julgamento à porta fechada dos miúdos, por teres querido ser mulher tendo nascido homem, por seres "um homem com mamas", que foste objecto da curiosidade e depois da violência do bando. E trato-te por querida, Gi, porque me apetece. Desde o início, quando te imaginei só e derrubada, dias e noites de dor e medo e incredulidade à espera que eles parassem com aquilo, à espera que um deles chamasse ajuda, à espera que te vissem - que te vissem -  e percebessem que não podias acabar assim, aos pontapés de meninos de rua de um país estrangeiro, tu que tinhas vindo de São Paulo para a Europa para cumprir os teus sonhos, tu que tinhas vivido em Paris e encantado plateias e arrebatado corações, tu que eras tu, única e irrepetível.

Desculpa, Gi. Não ter havido um milagre. Ou pelo menos uma pietá para te descer da cruz e te segurar na cabeça. Alguém a gritar justiça por ti à porta do tribunal, quando eles saíram e espetaram o dedo, de tão arrependidos. Desculpa  tanta desculpa.

(texto publicado na coluna contra os canhões do dn de sexta, indisponível na net vá-se saber porquê)
|| f., 14:10

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