Glória Fácil...

...para Ana Sá Lopes (asl), Nuno Simas (ns) e João Pedro Henriques (JPH). Sobre tudo.[Correio para gfacil@gmail.com]

quarta-feira, maio 9

e mais tabaco, mais, mais

o tiago mendes, que é uma espécie de alter ego meu nesta cena do tabaco, mas para melhor -- mais fundamentado, mais estruturado e com aquela cena toda económico-liberal na ponta da língua, coisa que eu, naturalmente, não m'alembra,tem uma adenda ao seu magnífico e faustosamente comentado post no cinco dias.

aqui vai.

O fumo dos outros (III) – por Tiago Mendes
Como fui pouco claro e, sem dúvida, prolixo de uma forma que se oferece a interpretações dúbias, aqui fica um sumário da minha posição sobre a atribuição de direitos a fumadores, não fumadores e proprietários de um estabelecimento comercial (EC). Três ideias importantes, primeiro.

(1) A lei proposta pelo governo socialista – sem grande surpresa, dado a inclinação política de quem a fez –, sofre de um paternalismo e mesmo de algum higienismo, que são absolutamente condenáveis. Insurjo-me contra isso com unhas e dentes. Contudo, sou capaz de, criticando o “espírito da lei”, comentar as medidas propostas de forma tão independente quanto possível (mas sem deixar de dar a devida importância às intenções do legislador, mais ainda tendo em conta que tal espírito – higiénico e paternalista – pode dar origem a coisas mais graves);

(2) Eu não me preocupo com a vida privada de cada um, mas sim com a atribuição (que considero) justa de direitos de propriedade do ar partilhado em diferentes espaços. Esta preocupação requer, quanto a mim, duas coisas: predisposição a encontrar soluções de compromisso, dado o conflito em questão; atenção ao passado, isto é, ao que temos vivido até hoje;

(3) É inegável que, até hoje, o que tivémos, na prática, foi um “default” em que é permitido fumar, ou seja, existiu, até hoje (ou até um tempo recente) uma atribuição de direitos de propriedade do ar partilhado aos fumadores. Porquê? Porque onde não era explicitamente proibido fumar, era permitido fumar. A ideia liberal de proteger a esfera dos indivíduos do fumo passivo não era relevante.

Um exemplo não assim tão descabido: a liberdade de um indivíduo andar nu num espaço público. Note-se como o “default” é o contrário: é proibido um indivíduo despir-se, a não ser onde isso seja permitido: em praias de nudistas, clubes privados que permitam a nudez, balneários, etc. Porque é que um tipo despir-se em público não é reconhecido como um “direito negativo” legítimo? Porque, dirão alguns, apesar de “só olhar quem quer” – quer na rua, quer num estabelecimento privado –, é uma coisa “que incomoda os outros”. Se isto é mais ou menos óbvio para muitos, não é assim tão óbvio que o fumo, por definição, tem um potencial grande de incómodo sobre os outros. Será que devia deixar de ser proibido andar nu nos cafés e restaurantes, cabendo essa escolha a cada proprietário? Não vale responder que isso é “um exemplo irrelevante”. Quem discute ideias tem de conseguir responder a exemplos hipotéticos.

A única justificação que eu encontro para limitar a liberdade de escolha dos proprietários tem que ver com o “carácter” do estabelecimento em causa. Quando se abre um estabelecimento comercial (EC) que está aberto a todos, oferece-se um serviço a indivíduos, é certo, mas muitas vezes (nem sempre), também à “comunidade de indivíduos”. Uma farmácia, uma padaria, uma mercearia, um supermercado – tudo isso são exemplos de serviços que são essenciais (nos dias de hoje, e não há nada de imutável ou estanque) a uma comunidade de pessoas. Não têm o mesmo carácter que bares, restaurantes de luxo, discotecas, clubes de bridge, casas de prostituição.

Dividiria, um pouco arbitrariamente, é certo, mas isto é, mais que tudo, um convite à discussão, não uma “proposta final”, os EC em três tipos:

Tipo 1: estabelecimentos onde o consumo é rápido *e* não eminentemente social *e* que não têm acesso restrito;

Tipo 2: estabelecimentos onde o consumo é demorado *ou* eminentemente social *e* que não têm acesso restrito.

Tipo 3: estabelecimentos onde o acesso é restrito.

Exemplos do Tipo 1: cafés, pastelarias, tascas e restaurantes durante o dia;

Exemplos do Tipo 2: cafés, tascas e restaurantes durante a noite; bares, discotecas e demais estabelecimentos de “diversão nocturna”.

Ou seja, acabei de acrescentar uma ideia que tinha em mente, mas que não incluí no meu post original: a (possibilidade de) distinção, para o mesmo estabelecimento, do “carácter” do serviço oferecido consoante o contexto; nomeadamente, consoante o horário de consumo.

As minhas propostas são as seguintes:

Longo prazo (situação desejável, para a qual se deve evoluir)

1. Nos EC de acesso restrito, isto é, de Tipo 3 – clubes privados, zonas privadas de EC públicos, associações, etc –, deve haver TOTAL liberdade de escolha dos proprietários quanto ao que se passa lá dentro, incluindo a política de fumo;

2. Nos EC de acesso público, de Tipo 2 – cafés e restaurantes durante a noite; bares, discotecas e demais estabelecimentos de “diversão nocturna” –, deve haver TOTAL liberdade de escolha dos proprietários quanto à política de fumo da casa, com uma pequena EXCEPÇÃO: os espaços “suficientemente grandes”, onde seja possível haver uma zona de não-fumadores, devem ter uma área mínima, digamos que de 20-25%, para não fumadores. Não tem de haver uma área mínima para fumadores, porque o dono tem o direito a ter uma casa totalmente livre de fumo. Contudo, se – e apenas se – o seu estabelecimento for suficientemente grande *e* for possível criar uma zona eficaz de separação de fumo, deve haver uma pequena restrição, favorável aos fumadores.

3. Nos EC de acesso público, de Tipo 1 – cafés, pastelarias e restaurantes durante o dia –, deve ser PROIBIDO fumar. A lógica (para quem esteja minimamente disposto a tentar entendê-la...) é semelhante à proibição de fumar noutros sítios relativamente “comunitários” e que prestam serviços mais ou menos “essenciais” e não eminentemente corporizantes de um desejo de "sociabilidade" - supermercados, padarias, farmácias. Quem lancha ou toma o pequeno-almoço, ou um almoço volante, não poderá fumar no estabelecimento. Noto que é possível que, no mesmo estabelecimento, não seja possível fumar durante o dia (digamos que até às 7h-8h), sendo permitido (ao dono) escolher a política de fumo durante a noite. Alternativamente, poderíamos pensar em atribuir licenças para poder permitir o fumo, garantindo a existência, mesmo durante a noite, de um mínimo de EC livres de fumo numa certa zona geográfica – e apenas, repito, pela ideia, que assumo seja irrelevante para muitos liberais, destes espaços terem, pelo menos em parte, um certo carácter de “serviço público” – de serviço não só a cada indivíduo em si, mas também à “comunidade de indivíduos”.

Na nossa sociedade, tirando alguns casos (quem tem acesso a cantinas, quem vai a casa, quem leva a sua marmita), todos precisamos de almoçar nalgum sítio durante o dia. Não existe um paralelo com o jantar e o que a ele se pode seguir. São necessidades diferentes. Aceito que haja uma distinção, num mesmo estabelecimento, entre “dia e noite” – to put it simply. Claro que qualquer classificação tem os seus problemas. Mas digam-me quantos são os estabelecimentos que funcionam apenas durante o dia, e para satisfazer necessidades não tão “sociais” quanto isso, mas primordialmente alimentares. Imensos.. Há uma diferença abissal para os estabelecimentos que funcionam durante a noite, e que satisfazem necessidades eminentemente “sociais”. O meu único ponto é que, apesar de serem propriedade privada, grande parte (não necessariamente todos) os estabelecimentos que oferecem services durante o dia, não eminentemente ligados a um desejo de “sociabilidade”, adquirem um cáracter peculiar, que justifica que sejam impostas algumas restrições. A necessidade de lanchar, almoçar ou tomar um café durante o dia é bem diversa do desejo de ir jantar fora social ou intimamente. Os estabelecimentos de Tipo 1 encontram-se mais próximos dos supermercados e padarias, em termos da sua “natureza”, no contexto de uma comunidade, que dos restaurantes onde se vai jantar social ou intimamente, bares e discotecas.

Hoje

1. Exactamente o mesmo.

2. / 3. Considero aceitável que existam restrições um pouco mais fortes que as propostas, de modo temporário, e apenas como forma de contrabalançar o que é uma situação história de clara assimetria a favor dos fumadores. Não se trata de querer “moldar” a sociedade, mas sim de proporcionar, de forma coerciva mas ponderada, uma vivência diferente, para que no futuro as pessoas possam, de facto, ter uma liberdade de escolha efectiva maior, porque mais informada, porque baseada numa vivência diferente.

Claro que para muitos liberais isto é inaceitável, porque só olham a liberdades negativas e formais *e/ou* porque consideram a propriedade privada uma coisa absoluta e, ainda, porque têm receio – e aí estamos em sintonia – de que possa haver uma deriva estatista de “experimentar” A ou B. O meu ponto não é experimentar – por experimentar –, nem sequer moldar a sociedade de modo X ou Y. A minha única preocupação, como já disse, é encontrar, no longo prazo, uma situação (mais) justa e equilibrada. Ora, tendo em conta os hábitos, costumes e valores enraizados na nossa sociedade, nos dias que correm – e no que ao fumo diz respeito –, julgo que só podemos encontrar uma solução (mais) justa e equilibrada se compensarmos, em parte, e com precaução, uma desigualdade histórica incontornável: a tal liberdade de fumar onde quer que não fosse explicitamente proibido.

Como escrevi no outro post, relembro que, há uns anos atrás, muito dos fumadores que hoje falam de modo civilizado sobre o “fumo passive” não o faziam. E quem não se lembra da oposição à proibição de fumar nas estaões de metro, espaços não privados fechados? Ou do fumo a bordo dos aviões? Enfim, o meu ponto também é que, numa discussão que desperta tantas paixões, e que envolve hábitos tão enraizados, há, quase inevitavelmente, uma certa cegueira da parte de quem está prestes a perder direitos adquiridos. Estranho seria se isso não se desse.

Nada disto, repito, significa que eu subscreva o “espírito da lei”, que é inaceitavelmente paternalista e higienista.

O que também é claro é que eu não considero a propriedade privada de um establecimento de acesso público necessariamente uma fonte de direitos absolutos sobre o que se passa nesse estabelecimento. Uma coisa é um estabelecimento privado de acesso restrito, outra coisa é um estabelecimento privado de acesso público, nos quais se incluem alguns – apenas alguns – que providenciam serviços que, não obstante serem resultantes de trocas livres entre indivíduos, de iniciativa privada de oferecer e comprar um produto ou serviço, prestam, também, sobre uma certa perspectiva, um serviço à “comunidade de indivíduos”. Não tenho qualquer problema em dizer isto, porque, sendo liberal, não tenho uma visão atomicista, ultra-individualista da sociedade.

Como escreve Rui Tavares:
"O liberalismo clássico valoriza a propriedade privada precisamente porque ela é relativa, e que entre a propriedade e a justiça escolhem a justiça. Podem considerar — como você — que a justiça emerge de em regra se respeitar a propriedade privada, mas isso não quer dizer que ela seja absoluta. Quer apenas dizer, como diziam os romanos, que a propriedade é o jus utendi et abutendi res sua quateus juris ratio patitur. Ou seja, o direito de usar e abusar de uma coisa sua, sim, mas enquanto a razão do direito o permita. (...) a razão do direito não me permite que eu, enquanto proprietário de um espaço público, não deixe lá entrar pretos. Não é justo, e a lei deve restringir o direito de propriedade nesse caso. O que não poderia acontecer se toda a propriedade fosse absoluta e todo o tipo de propriedade fosse igual (uma loja minha não é como a minha casa, onde eu posso efectivamente não deixar entrar sócios do sacavenense ou coxos, nem que seja apenas por capricho)."
Quanto ao comentário do João Miranda, faz-me pensar que one laugh a day keeps the doctor away. As caricaturas que o João Miranda faz de quem quer que se afaste, um milímetro que seja, da sua concepção de liberalismo, são sempre uma excelente caricatura do João Miranda. Um bálsamo para os seus fiéis leitores. Obrigado, João Miranda. Continue sempre.
|| f., 18:20

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