Glória Fácil...

...para Ana Sá Lopes (asl), Nuno Simas (ns) e João Pedro Henriques (JPH). Sobre tudo.[Correio para gfacil@gmail.com]

terça-feira, junho 12

ah, o amor

Isto em inglês, um inglês perfeito, com a imperial petulância e requinte do inglês upper class: ah, love. O tom, entre a ironia, a mofa e a mais romântica e desesperada melancolia. Ando há anos a tentar reproduzi-lo e a tentar lembrar-me em que filme o ouvi, pela boca de que vilão – porque era um vilão, e dos muito maus, ou seja, portanto, dos muito bons. Há outras entoações quase perfeitas: as de Nick Cave quando repete “Love, love, love”, a de Ian Curtis, dos Joy Division, em Love will tear us apart, por exemplo. Mas nenhuma como essa a fazer a síntese perfeita da ideia e do sentimento, dessa noção de algo tão deslumbrante e arrebatador quão improvável e fugaz, algo em que se consegue, ao mesmo tempo, acreditar e descrer em igual e furiosa intensidade.

Não há mais nada assim. E é provável ser necessário ter chegado a uma certa altura da vida – a idade do tal vilão, para lá dos cinquentas, ou um bocadinho menos -- , para sopesar e decantar da palavra todo o sortilégio e toda a amargura.
A altura em que afinal se percebe, por exemplo, por que raio choram certas pessoas nos casamentos dos outros. A altura em que aquela jura eterna, de “para o bem e para o mal, na alegria e na doença” e mais não sei o quê, deixa de soar oca e irrealista, até um pouco ridícula, e passa a ser apenas comovente na sua impossível certeza.

A graça disto é que o amor, a ideia do amor, é apenas uma espécie de supremo símbolo da vida humana. Estamos condenados, por incapacidade de funcionar de outro modo, a viver como se aquilo que sabemos ser impossível fosse a coisa mais certa que há. A pensar e planear e passar o tempo como se o tempo não nos faltasse, a crer que tudo vai correr bem como se não fosse óbvio que grande parte das coisas só pode, mais tarde ou mais cedo, correr mal.

Isto aplica-se desde as situações mais cómicas e comezinhas, como crer-se todas as primaveras que é desta que apareceu o anti-celulítico que funciona (e as marcas sabem que todos os anos têm de apresentar um produto novo, ou pelo menos a aparência da novidade, porque a renovação da fé assim o exige), até aos cumes da tragédia, como o que sucedeu aos pais de Madeleine McCann. Ouve-se agora discutir idas para o Algarve na base de “Eu tenho medo de levar para lá os meus filhos, porque dizem que há lá uma série de pedófilos ingleses referenciados”. A ideia de que haveria uma espécie de zona demarcada para os pedófilos ou para o rapto de crianças, ideia que não sobrevive a um micro-segundo de raciocínio, não é, obviamente, o que parece. O que está em causa é estabelecer um perímetro de segurança, certificar que o mal, o perigo, está ali, num lugar onde podemos escolher não ir, e não em todo o lado, a toda a volta, incluindo na nossa rua e, às vezes, vezes de mais (a maioria dos abusos sexuais de crianças, é incontroverso, sucedem no círculo familiar ou da vizinhança mais próxima), na nossa casa. Que podemos controlar, manter o horror à distância do retrato robot de um criminoso desconhecido, de preferência estrangeiro. Que casos como o do alegado serial killer de Santa Comba Dão, acusado da morte de três vizinhas adolescentes, e cujo julgamento se iniciou a 4 de Junho, são impensáveis (e é ouvir os vizinhos e amigos do ex-cabo da GNR repetir que não pode ter sido ele).

Que aquilo em que queremos acreditar, em que precisamos de acreditar, é verdade. Que o amor, para além de estar garantido para todos, é – ou pode ser – eterno. De tal modo se quis crer nisso que chegou a estar certificado por lei: as pessoas que juravam amor não podiam desdizer a promessa. Ah, o amor. Ah, a nossa espantosa e deslumbrante capacidade de negação.

(texto publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de domingo)
|| f., 14:27

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