acabei de ler a regulamentação da nova lei do aborto. depois de ter ouvido o ministro correia de campos certificar que 'tinham sido acolhidas todas as recomendações do sr presidente da república' à excepção de uma, que o ministro certificou ser ilegal (a participação de médicos objectores no processo, nomeadamente na consulta à mulher) estava já a hiperventilar, antecipando ver a obrigatoriedade de mostrar à mulher a ecografia do embrião, desejada por cavaco, plasmada no documento legal. mas não. nem uma vírgula sobre o assunto, o que demonstra que venceu o bom senso e a deontologia médica.
(antes que saltem das suas grutas os do costume -- que saltam na mesma, mas com menos desculpa para dizer disparates e tresler o que escrevo, ainda que seja uma inevitabilidade -- é óbvio, ou devia ser óbvio, que há uma diferença entre obrigar uma pessoa a ver uma ecografia e mostrar-lhe a ecografia se ela assim o desejar. a obrigatoriedade seria abusiva e, parece-me, impensável do ponto de vista do respeito que o médico deve à paciente).
ainda a propósito de deontologia, friso que uma dúvida de que havia já dado conta
num texto do dn e noutro
no cinco dias é dirimida na regulamentação (embora desdobrando-se noutras). assim, os médicos que se declarem objectores em relação à interrupção da gravidez terão de especificar qual o tipo de interrupção a que objectam. a regulamentação elenca as diferentes circunstâncias, tal como estão na lei, por alíneas. a primeira diz respeito ao perigo para a vida ou risco de grave lesão para a mulher (sem prazo); a segunda, a risco para a saúde física ou psíquica da mulher (até às 12 semanas); a terceira respeita a gravidez resultante de crime contra a autodeterminação sexual (16 semanas), a quarta diz respeito às malformações fetais e doenças congénitas do feto (até às 24 semanas, excepto quando o feto for inviável, caso em que o aborto pode ser feito a todo o tempo) e, por fim, a nova alínea: até às 10 semanas, a pedido da mulher.
vamos finalmente saber quantos médicos objectores de consciência quanto à interrupção da gravidez temos e a que tipo de interrupção objectam. interessante será constatar qual a alínea que reúne mais objecções.
a regulamentação inclui também referência às comissões técnicas de certificação de interrupção da gravidez para os casos fetais -- que já haviam sido criadas em regulamentação, salvo erro, de 1998 ou 99, posterior à alteração da lei efectuada em 1997, para alargamento dos prazos para esse tipo de aborto e para o resultante de violação --, especificando que tipo de especialidades médicas devem estar nelas representadas. nem uma linha, porém, quanto à necessidade de uniformização de critérios nesta matéria (que são, de acordo com o pouco que se sabe, muito díspares de comissão para comissão). nem uma palavra, igualmente, para o critério de interrupção em caso de crime de violação (a lei não diz se é necessária existência de queixa nem dá qualquer pista quanto à forma como se deve 'certificar' esse tipo de interrupção).
outra ausência clara é a de garantia de transparência no que respeita aos números das insterrupções. apesar de se especificar o tipo de informação que deverá ser recolhida, e que é bastante completa, não se diz que será feito com essa informação. em espanha, por exemplo, a regulamentação da lei especifica a necessidade de publicitação dos dados. os números relativos à interrupção da gravidez estão disponíveis ao público no site do ministério e são objecto de um relatório anual, em que se encontra informação detalhada sobre a idade das mulheres, o número de semanas de gestação, o tipo de aborto e a distribuição geográfica das intervenções. em portugal, os únicos números que a direcção geral de saúde disponibiliza anualmente, até agora, dizem respeito ao número total de abortos legais, sem qualquer outro desdobramento. apesar de existirem, na dgs, os números de aborto legal por hospital, esses dados nunca são disponibilizados. nem aos media nem sequer aos deputados -- quando, em 2004, se estava a preparar um estudo no parlamento sobre a situação do aborto em portugal, os dados que chegaram aos parlamentares e ao instituto público que foi encarregue do caderno de encargos eram apenas os do número total de abortos, por grosso. uma situação incompreensível que a nova regulamentação não dá mostras de vir modificar.