Ora, desculpem lá qualquer coisita, mas eu até me parece, que de facto não está com nada isto de pôr um suspeito a provar que é inocente, isentando a investigação criminal de ter que se dar ao trabalho de provar que é culpado. Dizem-me, e eu acredito, que a isto se chama “inversão da ónus da prova”.
Tem-se falado muito desta tal de inversão a propósito da intenção de criminalizar o “enriquecimento ilícito”, uma ideia de que se lembrou João Cravinho no início da legislatura e que depois outros partidos (o PSD, o BE, o PCP) repescaram e agora voltaram a pôr na agenda.
É claro que Maria José Morgado também há muito que clama pela dita criminalização. O que não me admira. Nada de pessoal tenho contra a procuradora-adjunta. Parece-me até movida pelas melhores intenções. Mas, enfim, digam-me um caso de um político que tenha sido condenado por via de uma investigação conduzida por ela. Só um. Zero, que me lembre. Maria José Morgado tem sido apresentada, até por amigos meus, como campeã no combate à corrupção. Mas, e os resultados? Nicles. Suspeito que, aliás, consciente ou inconscientemente, toda a sua veemência retórica só tem por função evitar que analisemos com atenção esses mesmos resultados (a falta deles).
Não admira que Maria José Morgado (e o Ministério Público todo) queiram criminalizar o enriquecimento ilícito. E quanto mais inversão dos ónus da prova melhor. Porque assim, estou a imaginá-los, será mais fácil. Um procurador repara que um político que há dez anos andava com uma mão à frente e outra atrás exibe agora um portentoso BMW X6, mais uma casa na Lapa, um vasto monte no Alentejo, uma penthouse em Nova Iorque, um luxuoso estúdio em Paris, uma simpática cabaninha, com piscina e corte de ténis em Pipa (Rio Grande do Norte, Brasil).
Vai daí o procurador pensará: “Este homem só pode ter isto tudo porque andou a receber subornos à grande e à francesa.” Muito bem. E depois, se pelo meio não apanhar umas escutas telefónicas em que o suspeito diga, várias vezes, “sim, sou um ganda corrupto, eh eh, é isso é que eu sou, sou mesmo mesmo mesmo, ui ui, olá se sou”, nunca chegará a lado nenhum porque é chato comó caraças perseguir transações e registos feitos em off-shores e coisas assim (mecanismos que só corruptos muito estúpidos não usam).
Tendo o enriquecimento ilícito com inversão (à brava) do ónus da prova previsto no Código Penal, qualquer procurador (e/ou inspector da PJ) poderá safar-se de ter de se dar ao trabalho de provar a corrupção (e crimes conexos, como fraudes fiscais, branqueamento, etc). Basta dizer ao suspeito: “Prove que isto foi tudo adquirido com o dinheiro que ganhou na política.” Se o dito não conseguir, azar o dele. Vai de cana. E quanto à prova da corrupção, zero. Ou dos crimes conexos. E não se provando a corrupção não se perseguirão os que pagaram os subornos ao suspeito. Nem se saberá para que efeitos foram pagos. Zero.
A criminalização do enriquecimento ilícito com inversão do ónus da prova é a confissão da incompetência da investigação criminal portuguesa (MP+PJ) para enfrentar crimes de colarinho branco. Ao fim destes caracteres todos era isto que queria dizer. Bem hajam.
Texto também postado no Cinco Dias