eu até tinha resolvido deixar cair o assunto, nomeadamente no que respeita a algumas passagens do
último post que tomás vasques me dedicou . por muitas razões, a principal das quais será mesmo a falta de paciência, ex-aequo com uma visão táctica de que não sou, embora às vezes pareça, totalmente desprovida.
acabo porém de encontrar o comentário de
eduardo pitta a esta troca. e, vá-se saber porquê, saltou-me a tampa (sim, já sabemos, é muito comum). nada me irrita mais que a misoginia dos 'homens de esquerda'. nada me irrita mais que o tom paternalista, pseudo-cavalheiresco, dos que peroram sobre as coitadinhas das empregadas domésticas, essas sim 'sem pretensões de ter direito ao corpo', versus as 'doidonas', na felicíssima fórmula do caríssimo tomás, 'tipo: esta noite vou dar o corpo ao manifesto e se alguma coisa correr mal tenho dez semanas para resolver o problema'.
caro eduardo, a batalha pelo sim é árdua, é, e, como escreveu bem a asl no dn de ontem, é de uma imensa delicadeza. de uma imensa delicadeza porque, como se vê, mesmo muitos dos que votam sim votam por pena, não por respeito. porque é esse o discurso que funciona, num país em que ainda há quem consiga escrever, num blogue e não para discurso de comício ou de propaganda televisiva (onde certos cuidados argumentativos poderiam eventualmente justificar-se) , isto: 'não estou preocupado com as mulheres formadas, informadas e com dinheiro que reclamam o direito à disposição do seu corpo, incluindo a IVG. Este é um outro nível de direitos, um outro nível de discussão que muito boa gente, normalmente oriunda do Bloco de Esquerda, pretender confundir com a descriminalização do aborto, colocando-o ao mesmo nível da descriminalização das drogas leves', e ser aplaudido por uma mole de gente que confunde complexos de sensatez e respeitabilidade com a mais básica misoginia.
é claro que as mulheres com dinheiro não precisam, na prática, desta lei para nada: se quiserem abortar abortam em boas clínicas. mas abortam ilegalmente ou no estrangeiro. são criminosas na lei do seu país. e isso faz toda a diferença, como faz toda a diferença para alguém que ame alguém do mesmo sexo saber que a lei portuguesa já não criminaliza (desde 1982) o sexo entre pessoas do mesmo sexo. não é, nunca foi, por a lei criminalizar o acto que ele deixou de ser praticado ou que o amor deixou de existir, e decerto já não havia, em 1981, nas prisões portuguesas, homens ou mulheres a cumprir pena por homossexualidade. mas retirar isso da lei foi um passo civilizacional incontroverso para todas as pessoas de real boa vontade. foi um gesto de respeito.
falar da 'confusão' entre a descriminalização do aborto e das drogas leves para quem 'reclama o direito à disposição do seu corpo' é um dos maiores e mais revoltantes disparates que já vi escritos. é a mesma coisa que dizer que o meu direito a decidir da minha vida, em última -- e primeira -- análise o meu direito a ser, a ser eu, está ao mesmo nível do meu direito a comer conquilhas.
se eu escavar um bocadinho, só um bocadinho, no argumentário do tomás, encontro esta extraordinária asserção: o tomás quer a descriminalização para as desgraçadas que são 'violadas pelos maridos no matrimónio', para as que lavam escadas, para as que não são jornalistas nem engenheiras nem arquitectas nem têm 700 euros para dar por um aborto seguro com anestesia, ecografia e etc. o que o tomás quer para as outras, para mim, é o que sobra e transborda desses três posts que tão bem crismou de 'abortemos, pois' -- mesmo se já admitiu, tarde e com ajuda, a infelicidade do título.
ainda que mal lhe pergunte, tomás, exactamente contra que fascismo é que andou a lutar?