1.Esta discussão está interessante. E, ao contrário de muitas na blogosfera, é de facto muito importante. E é porque na blogosfera se pode discutir o assunto liberto dos constrangimentos da
real politik aos quais a generalidade do poder político ocidental se subordinou.
2. Uma coisa é queremos manter no "Ocidente" as regras ocidentais (democracia, liberdade de expressão, primado da Lei) e outra é querer exportá-las. Quanto à primeira parte, acho que o caminho se faz sem a mínima cedência; quanto à segunda sou contra, e mais ainda quando se faz à força (Iraque), até porque já se viu que "lá" a nossa democracia não resulta.
3. Ou seja: nos países islâmicos eles que se organizem como quiserem. Eu, indo lá, respeito as regras de "lá", como
muito bem fez o RAF. Mas "cá" respeitam-se as regras de "cá".
4. "Cá" uma das regras é a liberdade de expressão. A liberdade de expressão inclui o direito de os neo-nazis se manifestarem no Rossio ou o direito de a Livraria Bertrand junto à redacção do PÚBLICO expôr na montra exemplares do
Mein Kampf, obviamente com o intuito de os vender (e, logo, lucrar com a propagação do anti-semitismo). Admitindo esta regra - eu, pelo menos, admito-a - tem que se, evidentemente, admitir que a liberdade de expressão também pode incluir o anti-islamismo ou propaganda anti-islâmica. Por maioria de razão.
5. Quando essa liberdade de expressão é sentida como uma humilhação ou uma blasfémia, os que se sentem visados têm obviamente o direito todo de se sentirem ofendidos e de manifestar essa ofensa, como aliás já
escrevi. O direito à manifestação da indignação faz parte também da liberdade de expressão.
6. Mas "cá" a manifestação da indignação faz-se dentro dos limites da lei. Com manifestações de rua (mas sem violência) e/ou nos tribunais e até doutras formas (não me chocaria, por exemplo, que os muçulmanos decretassem um boicote ao jornal em causa). No caso dos "cartoons" não foi só isso que se viu. Viu-se isso e muito mais. Ameaças, coacção física e, por exemplo, destruição de embaixadas (que são território de "cá", embora no estrangeiro).
7. Visto que os radicais islâmicos não se sabem comportar "cá" dentro das leis que que nos regem, e que por isso até já foram assassinadas pessoas (e outras, como o
Salmão Rushdie, só não morreram porque o Estado as protegeu), acredito que a única forma de lhes "explicar" a coisa é fazendo ver que não há cedências. Ou seja, neste caso concreto, publicando os cartoons quantas vezes forem necessárias até que percebam que há outras formas de expressar a indignação que não seja sob a forma de selvajaria.
8. Os humilhados e ofendidos do islamismo - os que "cá" vivem - têm de, nomeadamente, perceber que não é pressionando um Governo (no caso o da Dinamarca) e chantageando-o economicamente que se impõe limites à liberdade de expressão. "Cá" não são os governos que vigiam a liberdade de expressão; são os tribunais. "Cá" é assim que se funciona - "lá" é como eles quiserem, volto a dizer.
9. As comparações deste caso com o cartoon do preservativo ou o do
Je Vous Salue Marie ou a reacção do Vaticano ao
Código Da Vinci fazem-se claramente num quadro de pura desonestidade. Alguém se lembra de algum desses casos atingir um milionésimo das dimensões (e da respectiva violência) que este assumiu?
10. Significa isto algo muito simples: por "cá" venceu a luta a contra a intolerância religiosa e a luta pela laicização do Estado e das suas regras. Não podemos, evidentemente, permitir que volte tudo atrás, seja qual for a religião.
11. Dito isto, Ana, um ganda
Allah Akbar! pra ti também, adeus e até ao meu regresso, que a minha vida não é isto. Beijinhos. (Amanhã vou ver o
Munich. Depois conto.)