eu sei que prometi ao jph que não ia sotterrar as postas dele (que ele
POSTOU!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! LEIAM-NO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!) com mais uma tonelada de caracteres das minhas obras completas. mas eu sou assim: má comáscobras (acredito mesmo naquilo de 'when i'm bad i'm even better'). e depois não tenho culpa -- juro -- que a gnr tenha resolvido balear mais um carro.
de modo que aqui vai o primeiro fascículo de 'licença para matar', reportagem publicada em 1991 na grande reportagem, com remake em 1996 na sic.
Lisboa, 4 de Novembro de 1981. Três horas da manhã. Um Honda 600 azul escuro desce a avenida da Liberdade, lento, de luzes apagadas. Lá dentro, só o condutor.
É uma noite de Inverno, fria e húmida. As ocupantes habituais dos passeios buscam abrigo nos vãos das portas, apertam os abafos. As ruas estão desertas. O Honda desce até ao quarteirão das Loiças de Sacavém, atravessa a avenida, sobe até ao Tivoli. Atrás, um Datsun com três homens segue-lhe as voltas.
Na rua Manuel Jesus Coelho, o Honda vira à direita. Não tem saída. Inversão de marcha, e está de volta à avenida. O Datsun negro espera-o frente ao cinema. Um dos ocupantes interpela o condutor: "Então essas luzes?" O outro não responde. É o momento que os homens do Datsun, segundo a versão oficial, escolhem para se identificar. Ligam a sirene, puxam do pirilampo e da raquete luminosa, fazem sinais: Polícia.
São 3.25 h da manhã. O Honda não pára. Sobe, vira na Alexandre Herculano e toma a direcção da rua Castilho. No Datsun, Joaquim Manuel Caetano dos Santos, Isidoro Francisco Lima Guerreiro e José dos Santos Simões, os três elementos da brigada especial da PSP, já não o largam. Depois de passar vários sinais vermelhos e de circular com as luzes apagadas, o condutor do Honda não acatou as ordens da polícia. Os homens da PSP asseguram que por duas vezes, antes da rua Alexandre Herculano e em frente à Duque de Palmela, estiveram lado a lado com ele, com todos os dispositivos de identificação policial em funcionamento. Sem resultado. Na rua Castilho, por fim, conseguem interceptá-lo. Atravessam-lhe o automóvel à frente, mesmo ao pé do banco Espírito Santo. No preciso local onde Nuno Francisco Morais Neto, 24 anos, engenheiro técnico-agrário e forcado dos amadores do Ribatejo, tem o hábito de arrumar o seu Honda 600. À porta de casa.
No relato dos três agentes, a partir daí, as coisas precipitam-se. O chefe da Brigada, Joaquim dos Santos, e o condutor do Honda saem quase simultaneamente dos respectivos veículos. Santos, que traz uma metralhadora Baretta debaixo do casaco, grita "Polícia", e exibe o cartão. Nuno Neto atinge-o com uma cabeçada que o faz largar a pistola metralhadora. Na posse da Baretta, com a patilha de segurança em posição de não disparar, aponta alternadamente aos três homens. Joaquim Santos tenta segurá-lo por um braço, o guarda Isidoro dá-lhe com a raquete na cabeça, mas nenhum consegue dominá-lo. É então que o agente Simões sai da traseira do carro e puxa da sua Walther de calibre 7,65mm.
Dispara o primeiro tiro para o ar e os seis seguintes, à distância de 1 a 3 metros, na direcção de Nuno Neto. Pára quando vê que o suspeito, atingido quatro vezes, já não constitui ameaça. Vai buscar as algemas. Mas é inútil.
No corpo de Nuno Neto, a vida foge com o sangue. Sobre ele, desce uma noite mais escura que a de Lisboa, riscada por espasmos azulados de uma ambulância, o reflexo doentio dos corredores de S.José, o clarão ensurdecedor da sala de operações. As balas atravessaram-lhe a artéria ilíaca, rasgaram-lhe os músculos das pernas, o baixo ventre. As pálbebras descem mais uma vez, os olhos dilatam-se sob a anestesia. O líquido que lhe entorpece as veias poupa-lhe a consciência do fim.
Na rua Castilho, a avó de Nuno Neto é acordada pela chamada do guarda do banco Espírito Santo, que viu tudo. «O meu filho vivia com a minha sogra. Quando o guarda do banco, que conhecia o rapaz, lhe telefonou, aquilo tinha acontecido há um tempo», recorda Nuno Pedro Neto, pai do regente agrícola. «Eu estava em Benavente. Vim o mais depressa que pude, mas quando cheguei ao hospital, às 9 da manhã, ele já estava morto. Tinha perdido tanto sangue que o coração lhe falhou, durante a operação. Fui à procura das coisas dele, mas a mulher que tinha ficado com elas já não foi capaz de encontrar as calças e as cuecas. Tinham desaparecido e nunca mais apareceram. Os tiros à queima-roupa deixam marcas, sabe.»
Nessa madrugada, o telefone voltou a tocar na casa da rua Castilho. Um homem, apresentando-se como chofer de táxi, contou à avó do rapaz que tinha assistido ao tiroteio. E que o neto tinha sido baleado sem razão. A senhora pediu-lhe que voltasse a ligar, para falar com o genro. Em vão.Ninguém mais apareceu para contar o que viu naquela noite de Novembro, há dez anos, quando a morte saiu à rua no coração de Lisboa.
«O meu filho vinha de um casamento no Montijo. Tinha ido pôr uns amigos a casa e deve ter-lhe apetecido dar uma volta na avenida. Se percebeu que vinha um carro atrás dele, é capaz de não ter ligado. Os polícias tiveram todas as oportunidades de o fazer parar na avenida: até tinham um carro mais potente. Andaram para ali a subir e a descer atrás dele, e foi só quando ele arrumou o automóvel à porta de casa é que o interceptaram. Se o Nuno fosse a fugir, não ía pôr o carro no sítio do costume. Acho que nem teve tempo para entender o que se passava, quando começaram a disparar. Dizem que ainda tentou tirar a metralhadora ao chefe, mas ele não sabia mexer naquilo. Não tinha ido à tropa. »
Na manhã de 4 de Novembro de 81, os jornais surgem com a notícia. É mais um tiroteio entre polícias e ladrões. Em alguns casos, embora se indique a matrícula e a marca do carro, o jovem baleado não tem nome e é apontado como "larápio de automóveis", "meliante", etc. A PSP fala de perseguição e luta que termina com o suspeito dominado com dois tiros.
Em nenhum artigo se fala de inquérito ou se lança a menor dúvida sobre os acontecimentos. É só alguns dias depois que vêm a lume outras informações. Na edição de 9 de Novembro de O Diabo, faz-se menção ao agente Silva, da esquadra da PSP do Largo do Rato, que naquela noite estava de guarda ao Banco Espírito Santo. Segundo ele, o primeiro tiro teria sido disparado de carro para carro, quando Nuno Neto estacionava o Honda ao pé de casa. O jornal menciona provas —¬ a marca de um projéctil na porta dianteira do lado esquerdo da viatura, as manchas de sangue visíveis no banco do condutor, o fio, medalha e relógio da vítima aí encontrados— e afirma, baseando-se no relato da mencionada testemunha, ter sido o jovem, depois de atingido pela primeira vez, puxado para fora do carro pelos elementos da brigada e baleado à queima-roupa. Curiosamente, esta versão dos acontecimentos — que o guarda do banco, única testemunha ocular a prestar declarações, esqueceria mais tarde ao corroborar o relato dos três elementos da brigada — coincide com os resultados da autópsia e do exame pericial ao Honda de Nuno Neto, que por razões desconhecidas nunca viriam a fazer prova em tribunal. No relatório do Instituto de Medicina Legal, diz-se, na folha 190: "foram quatro os disparos que atingiram a vítima e qualquer deles a podiam ter atingido na posição de sentada. É nítida a direcção de todos os disparos, supondo a vítima sentada, de cima para baixo, de diante para trás, três da esquerda para a direita e um da direita para a esquerda." No Honda, que se anota ter sido "estranhamente abandonado num parque às intempéries, sem qualquer exame imediato, encontraram-se, quando tal exame foi feito, fragmentos de projécteis, quatro provenientes do núcleo em chumbo, três de blindagem (...), sugerindo terem resultado da fragmentação de elementos de calibre 7,65 mm (...)" O mesmo relatório menciona ainda um raspão, no sentido descendente, no interior da porta dianteira do lado esquerdo, causado pela passagem de um projéctil: "poderá ter correspondido a um disparo efectuado através da janela aberta, já com a arma no interior da viatura (...) ou realizado do exterior mas com a referida porta aberta." Além de que "a viatura se encontrava manchada na porta esquerda e nas proximidades e que o sangue das nódoas é humano."
Evidenciam-se assim neste processo alguns factos de compreensão difícil, tanto no que respeita à instrução criminal como ao próprio trânsito em juízo, apesar de na época se ter assegurado, nomeadamente por parte da PSP, uma firme vontade de fazer justiça. O então comandante-geral da corporação, o brigadeiro Almeida Bruno, terá mesmo afirmado que não iria permitir que o caso se transformasse em "mais um".
«Por acaso, eu conhecia o Almeida Bruno e fui falar com ele, depois de aquilo acontecer», recorda Nuno Neto, pai do falecido. «Ele respondeu-me: 'O que é que quer que eu diga a um homem a quem acabam de matar o filho? Eu tenho as mãos atadas, não posso fazer nada. Você, tente apanhá-los, mas desde já lhe digo que não acredito que consiga.' E levou-me ao refeitório, para eu ver o outro lado das coisas, as famílias dos polícias mortos, as mulheres de luto com as crianças. Explicou-me que ele, na sua posição, não podia ajudar-me.»
Dez anos depois, está feita justiça. Absolvido em Janeiro de 90 pelo tribunal de Primeira Instância, José dos Santos Simões foi condenado, por recurso dos familiares de Nuno Neto ao Tribunal da Relação de Lisboa, a dois anos de prisão com pena suspensa e a uma indemnização de um milhão de escudos. Interpondo por sua vez recurso, o réu foi totalmente absolvido pelo Supremo, em Fevereiro de 1991, após novas alegações.
«O julgamento correu pessimamente. Os tipos cerraram fileiras. Falava-se daquele polícia e ele respondiam com a corporação. Vieram testemunhar oficiais que o tinham condecorado, arranjaram uma história de uma missão qualquer em que ele, por não querer disparar, tinha deixado um colega em perigo, para provar que não era tipo para disparar à mínima provocação. » Nuno Neto fala com um desgosto cansado. Lembra leis antigas, olho por olho, dente por dente. Mas a revolta é um vulcão extinto que lhe deixou na face um rasto de pedra. A justiça portuguesa? «Um complot», para resumir.
José Santos Simões não ficou surpreendido com o resultado do processo. Dez anos depois, continua na esquadra de Santa Marta, e o PBX passa-lhe a chamada sem perguntar porquê. Depois de um breve silêncio de espanto, por lhe lembrar uma história tão antiga, responde com satisfação: «Foi feita justiça. Foi sempre aquilo que esperei.» A corporação apoiou-o ao longo deste tempo todo? José Simões hesita um pouco, a voz em falso, como quem não sabe a resposta certa. «Sem dúvida que sim». Chegou a estar preso? «Não...» Acabou o tempo. «Mas se quer saber mais alguma coisa, a senhora tem de se dirigir ao nosso comandante. Eu não sou a pessoa indicada.»
Quem reclama este corpo?
Um dia, um homem existe. No outro dia partiu. Deixou para trás um nome, a impressão das linhas do rosto em algumas fotografias, o eco de uma ou duas frases, a pulsação ténue de uma alma. Cada dia que passa é mais difícil encontrar a sua sombra, até que finalmente o olvido suavize o delírio da falta. Uma ou duas pessoas farão os possíveis por permanecer perto dos vestígios desse corpo, salvá-lo do seu destino. Sofrer até ao fim e recomeçar de novo, para que nada se perca. Mais ninguém quererá falar dele, ninguém quererá carregar consigo o peso dessa sentença. Remete-se a culpa à casualidade das coisas, ao supremo desígnio de uma realidade indecifrável. Depois da raiva, os sentimentos são terra queimada que reduz os gestos a uma inutilidade enluvada. Não há ninguém para assumir esta culpa, mesmo que nas suas mãos tenha estado a arma que disparou. Justiça é uma palavra demasiado divina para ser pronunciada por homens, e só se entende como caricatura. Nenhum sacrifício, nenhuma pena, redime este lugar vazio. A morte é uma obscenidade que tudo reduz a silêncio.
Benavente, 4 de Novembro de 1991. Os pais de Nuno Neto vão sair, como todos os anos no mesmo dia, para a missa por alma do filho. «Os tribunais julgaram, não há mais nada a fazer. Temos de nos resignar.» Do outro lado da linha, a mãe faz uma pequena pausa, a deixar o silêncio sublinhar o peso de cada palavra, para que caia bem fundo e não atormente mais a memória. «Mas nunca nos resignamos.»
A vida flui, continua a correr, mesmo que a qualquer hora, num lugar qualquer, um rosto de passagem, uma silhueta distante ou um telefonema invoquem as marcas de uma ausência indelével. Então a dor revela-se uma aliança perpétua, sem recurso. Sente-se-lhe a presença como uma aura, uma bruma tépida que as palavras atravessam com dificuldade. Que nada pode aplacar. Porque os mortos não regressam, nem para clamar vingança. E os deuses, já se sabe, nunca se levantam.
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