Glória Fácil...

...para Ana Sá Lopes (asl), Nuno Simas (ns) e João Pedro Henriques (JPH). Sobre tudo.[Correio para gfacil@gmail.com]

quinta-feira, janeiro 18

a goa da paula

a paula sousa nunes enviou para o glória a sua memória de goa. anos 80, antes das top tours. adenda ao congelado dos anos noventa. aqui vai,

'Estive em Goa no princípio dos anos 80. A mesma saga aérea, Frankfurt, horas de aeroporto e longo voo felizmente menos atafulhado que hoje.

O desembarque em Bombaim, ao alvorecer, o calor pegajoso, o táxi até ao porto para apanhar o barco até Goa. Essas duas horas em que atravessei Bombaim mudaram a minha vida. É certo que fazia uma viagem existencial ao oriente, em vésperas de uma grande cirurgia, de resultado incerto. Considerava a hipótese até de nem regressar. Nessas duas horas, colada ao vidro do táxi, assisti ao acordar,  que percebi milhares de vezes repetido, de uma civilização, de uma outra dimensão, antiquíssima e real, muito mais real do que a que abandonara em Frankfurt. Nas soleiras das portas, nos degraus dos templos, pedintes erguiam-se, sacudiam os andrajos e olhavam-nos com aquele olhar negro que nos trespassava de humanidade e doía cá fundo, tão fundo que nem sabia que existia uma tão grande profundidade em mim. Outros vultos permaneciam prostrados, envoltos em panos de cor indefinida. Já não veriam o novo dia. Em redor, uma multidão colorida de gentes e veículos devolvia à cidade mais uma jornada barulhenta e quente. Quando cheguei ao cais, abalada por uma realidade que apenas pressentira nos livros e nos filmes, não tinha a certeza de querer continuar.

No barco, a caminho de Goa, entre indianos, forasteiros e freaks, uma tempestade ciclónica quase resolveu definitivamente as minhas dúvidas. Viajava com a amiga de uma amiga, da qual me separaria, semanas mais tarde, em Katmandu, para reencontrar, semanas depois, nos Himalaias, por um absoluto acaso. Mas nessa altura éramos duas portuguesas a caminho de Goa. E isso era todo um programa. A nossa referência local era o Lobé Távora, que a Fernanda já não conheceu, provavelmente. Ficámos em Baga numa casa na praia alugada a uma Maria. Tantas vezes em Mapusa e Calengute fomos interpeladas na rua por gente que só nos queria ouvir falar português. Nas vésperas da partida enviámos para Portugal panos, pulseiras e outras quinquilharias. Fizémos um pacote de pano, que cosemos com agulha e linha emprestada pelo Lobé e  que deixámos na velha estação dos CTT, à responsabilidade do chefe.  Chegou intacto, os mesmos pontarelos inviolados.

Nessa altura, os goeses da diáspora  ainda não tinham a top tours com os preços de massas, a fricalhada ainda não tinha invadido Goa, apenas alguns  franceses e alemães ilustrados alugavam casas à época ou ficavam no único hotel de Baga, ingleses e italianos emVagator ou Anjuna, e os indianos observavam-nos curiosos, mas sem frequentar nem as praias nem as chai shops. Os hippies que resistiam, alternavam entre Goa no inverno e, vinda a monção, o Rajastã ou Cachemira. Ainda não havia resorts e o Hotel Pangim, em Pangim, tinha aquele ar decadente e colonial que só fascinava no primeiro dia. 

Regressei com Goa no coração, a Goa dos anos oitenta, entre a nostalgia e a rejeição, mas com a portugalidade desastrada e comovida inscrita  na estranheza do vestuário (as saias católicas) e da língua que, sentia-se, desapareceriam um dia, com os últimos sobreviventes goeses.'

 


 
|| f., 13:17

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